Quando o Brasil dá parabéns com uma mão e inverte o mundo com a outra
Divulgação Netflix
Tem semanas em que o Brasil parece aquele tio que te abraça no aniversário ao mesmo tempo em que comenta que você “engordou um pouquinho”. A mistura perfeita entre afeto e frustração.
Foi mais ou menos isso que nesses dias atravessados por duas datas importantes: o Dia do Empreendedorismo Feminino e o Dia da Consciência Negra — ambas carregadas de significado, força e memória.
E enquanto a gente repostava frases sobre potência, visão, coragem e legado negro, veio a notícia que abriu um buraco no terreno da esperança: o presidente Lula indicou mais um homem — branco — ao STF.
Não era qualquer semana. Era justo a semana em que o Brasil dizia celebrar mulheres, celebrar pessoas negras, celebrar quem rompe barreiras. A promessa era de reparação histórica… mas o gesto foi de déjà-vu institucional.
Parece que o país sabe muito bem fazer cartaz bonito, vídeo institucional sensível, discurso emocionante — mas tropeça sempre na hora de colocar a representatividade onde ela realmente importa: no poder.
Mulheres negras são maioria entre as empreendedoras que levantam negócios com criatividade, suor e pix parcelado. São maioria entre as chefes de família. Entre as que sustentam o país no varejo, no cuidado, no ensino, na cultura.
Mas seguem minoria nas decisões. Minoria nos tribunais. Minoria nos comandos.
O que dói é o silêncio confortável que a acompanha, como se fosse inevitável. Como se não houvesse nomes extremamente qualificados. Como se a cadeira estivesse destinada de fábrica a repetir o padrão.
Pra aliviar o estômago: Stranger Things enfim está de voltanod em sua temporada final...
Eu, que já adoro um portal pro mundo invertido, percebi que a série anda mais documental do que ficção. Os monstros saem do chão; os nossos, do Congresso. As crianças lutam contra forças invisíveis; nós lutamos contra forças visíveis que fingem ser invisíveis. O perigo ronda a cidade deles; o perigo ronda a história do Brasil.
A diferença é que, em Hawkins, quando o bicho pega, todo mundo se junta. Aqui, quando o bicho pega, alguns pedem “moderação”, outros fazem textão, e a maioria finge que não viu.
E eu fico lembrando das empreendedoras que conheço — mulheres que conseguem criar um negócio com menos apoio do que um Demogorgon recebe em CGI. Mulheres negras que ocupam o mundo do próprio jeito, que dobram realidade no meio do caminho, que criam soluções onde antes só havia muro. Mulheres que deveriam estar nas cadeiras de poder e não apenas nas vitrines comemorativas de novembro.
A verdade é que o Brasil adora celebrar datas, mas tem dificuldade de celebrar pessoas. Institui feriado da Consciência Negra, mas estranha quando uma mulher negra é indicada pra algo grande demais. Celebra o empreendedorismo feminino, mas tem calafrios quando a mulher começa a decidir política pública.
É como se dissesse: “você pode tudo desde que fique exatamente onde eu acho confortável”. Pois eu não fico confortável. E não acho que você fique também…
Então que venha Stranger Things — ao menos lá, quando o mundo vira do avesso, existe chance de vitória. Aqui, a vitória só virá quando as comemorações deixarem de ser estético-intencionais e passarem a ser estruturais.
Um país que celebra mulheres e pessoas negras precisa fazer mais do que lembrar datas. Precisa lembrar decisões. E precisa, urgentemente, abrir portais melhores para o futuro do que os que a gente tem atravessado.
Laís Sousa
Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!@laissousa_
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