O alvo não acerta o tiro nem na justificativa...
Gabriel de Paiva
O estopim veio numa madrugada — luzes de helicóptero, blindados subindo morro, batalhões com mais de 2.500 agentes invadindo favelas ainda sonolentas. [Mega]operação Contenção, no Complexo do Alemão e na Penha, no Rio de Janeiro, resultou oficialmente em ao menos 64 mortos — segundo organismos independentes, mais de 120. Dezenas de famílias feridas, medo que vira rotina.
Mas a pergunta que pulsa como bala perdida é outra: quem são os alvos dessas operações?
Na manhã em que o morro virou campo de batalha, o governador Cláudio Castro segurou a câmera, falou em “narco-terrorismo”, decretou guerra e se posicionou como o comandante. Mas quem realmente comanda o tiro – e quem paga o preço da bala perdida – continua sendo quem nunca ocupou o palácio ou posou pra foto oficial (com ou sem metralhadora)…
Não são só criminosos. Não são apenas fuzis e barricadas. São pretos. São pobres. São mães que esperam filhos que não voltarão. São corpos negros que correm nas vielas com chinelo ou descalços, que atraem o olhar da guerra porque o preconceito já os marcou como alvo.
A operação foi anunciada como golpe no tráfico, retomada de território, milícia do crime. Mas a favela foi o campo e a vida cotidiana virou trincheira. Enquanto a manchete falava “combate ao Comando Vermelho”, o que se notificou foi mais um massacre — “operação letal”, “chacina”, “estado de exceção”. Matou mais que Carandiru! IML não comporta a falência do Estado…
Ainda assim tem holofotes no “sucesso” - a caça aos fuzis apreendidos e o anúncio de que o Estado havia sido “restaurado”. Mas de onde vêm essas armas? Não de fábrica oficial. Não de mercadinho de bairro. Uma guerra circula paralela à ostentação de poder estatal. Armas vindas de rotas ilícitas, de miséria e conivências — não só criminosas, mas políticas. No entanto, a favela, historicamente invisível nos corredores da política, virou palco.
Quando escutamos que “precisamos agir com firmeza” enquanto famílias retiram corpos da mata, crianças gritam por pais, mães rezam por justiça — não estamos falando de eficácia. Estamos falando de espetáculo. Estamos falando de que o crime, de fato, não precisa de fuzis. Ele precisa de abandono. De invisibilidade. De quem esquece que favela também é lugar de gente.
O governador posa como justiceiro. Mas a mão que castiga não investiga quem abastece o cano. Enquanto o número de armas confiscadas vira troféu midiático, o destino das redes de financiamento, da lavagem de dinheiro, do cartel de armas segue invisível. A bala atravessa o corpo do menino que mora no morro; o “comando” aparece no Instagram do governador e nas campanhas de período eleitoral.
Pense no que significa: uma operação que mata mais de cem pessoas e ainda assim promete “tranquilidade futura” para a cidade. Significa que o problema real não está na favela. Está nas ideias que sustentam a favela como usina de descartáveis, como depósito de vidas que importam menos. A política que maquila operação para promover “segurança” esquece que segurança não vem empunhando fuzil, mas desmontando as razões que permitem que o subfuzil seja mais comum que livro em bibliotecas de morro.
O alvo não foi só o tráfico. O alvo foi a pobreza — e a consequência de viver pobre, preto e morando no morro.
Educar, gerar emprego, melhorar saneamento, dar oportunidade — tudo isso vira discurso enquanto se dispara bala de fuzil e se defende que “houve resistência”. A realidade vem no ódio e na sede de “estragar o velório”, em corpos sem cabeça e desfigurados. O fuzil do Estado cai sobre quem, muitas vezes, não empunha fuzil. Cai sobre a casa errada, o menino jogando bola, o vizinho “em dúvida”.
Em meio ao debate, há quem ergue mão pra aplaudir. “Esses bandidos não respeitam a lei” — diz quem nunca olhou para a favela além de manchete. “Tem que apertar” — Mas apertar o quê? A pobreza? O ciclo? A estrutura que cria e sustenta o tráfico?
A política de segurança pública do Rio, e de tantos lugares, virou: “vamos entrar e matar”. Morrer em operação virou “baixa”. Morreu preto no morro e virou número. Virou “colateral”. E o que se espera em troca? Que a favela durma sorrindo? Procure saber a origem dos comandos, das facções criadas para reagir a supostos abusos do Estado…
Enquanto isso, o governador declara “vitória” e deixa a conta para quem costurou sonhos no beco e viu a fumaça subir. Quem vai responsabilizar o Estado que se arma, invade e depois vira holofote? Quem vai reconstruir o que a operação rasgou — casas, vidas, dignidade? Investigações demoram, poucos são responsabilizados. Porque matar em operação — quando o alvo é quem corre de chinelo e sem camisa — não exige explicação.
Quem “ganha” com isso são os que nunca pisam na favela, os que fazem voto fácil pelo medo, os que vendem segurança com cadáver alheio. A estrutura permanece intacta. O crime organizado se reconfigura. O estado sai com cinema de fuzil, mas sem arrancar a raiz. Como perfeitamente retratou Tropa de Elite II, “o sistema se reinventa”...
Essa semana, a favela marcou mais um capítulo de horror. Não é guerra, é genocídio travestido de operação. Há quem sorri com o relatório que diz “alvos identificados” e “fuzil apreendido” enquanto a verdade se dissolve no lençol que cobre um corpo que podia ter levantado.
O maior crime não está no morro. Está no fato de que seguimos fingindo que essas vidas importam menos. Na crença do Estado em poder dizer: “dominamos”. Em deixar os que amam num chão de concreto, sem flores, sem justiça, sem nome lembrado.
[O Rio teve um Freixo de esperança, mas preferiu seguir com um Castro de fé no Liberal]
Até quando?
Laís Sousa
Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!@laissousa_
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