O menino que veio brincar

 

Reprodução arquivo pessoal de João Dias

Não espere de mim o ibope desejado por Vinny Jr e Virgínia x Ana Castela e Zé — porém, Zé, que afirma estar vivendo a melhor fase da vida após o fim de um casamento em que teve três filhos, foi, por tabela, coadjuvante de outra história que não dá pra ignorar.

Poliana Rocha, esposa de Leonardo, contou numa entrevista que, em uma viagem à Bahia, “pegou um menino que vendia chinelos na praia” e o levou de avião pra fazenda Talismã, em Goiânia, pra brincar com o filho Zé. Assim mesmo: sem falar com a mãe, sem autorização, sem constrangimento, sem nome do menino que depois se revelou “Jão”. 

O menino ficou mais de um mês na casa da família, ganhou roupas novas, consulta médica, cabelo alisado e, segundo ela, começou a “ficar o dia inteiro com o pezão pra cima no sofá”. Quando o encanto passou e o menino já não servia mais ao papel de brincar, foi mandado de volta pra casa “com cabelo cortado, sem verme e com pensão paga por um ano”.

A história foi contada como se fosse bonita — uma anedota de amor, cheia de graça. Mas não é. É a herança viva de um país que nunca desfez o nó do colonialismo, da escravidão, da branquitude. O Brasil que acredita que afeto é posse, que cuidado é controle, que amor é algo que se oferece de cima pra baixo, como quem distribui benção ou caridade.

Não foi adoção. Foi apropriação. E o mais grave é a naturalidade com que tudo é dito — o riso leve, a entrevistadora cúmplice, o orgulho na voz de quem não percebe o que confessa. A progressiva no cabelo como sinal de cuidado. O “pezão pra cima” como acusação velada de preguiça. Esse velho estereótipo que o país insiste em colar em quem é do Nordeste, em quem é negro, em quem ousa descansar de uma vida inteira vendendo chinelo sob o sol.

O gesto que se vende como generosidade carrega o DNA da desigualdade: a crença de que o pobre deve agradecer por qualquer migalha de conforto, de que o baiano precisa ser “agraciado” pra se encaixar no ritmo do centro-sul, de que o corpo negro é um corpo a ser domesticado — até no cabelo. E é curioso como a narrativa se mantém doce, intocável, imune à crítica de pano passado.

Poliana, que agora ameaça processar quem “distorce” o que seria prova de sua bondade, parece não perceber que amor, quando atravessa fronteiras sem pedir licença, não existe. O amor que apaga a origem, que reescreve a história do outro, que leva uma criança sem o consentimento da mãe, não é amor — é poder.

O menino que veio brincar não brincou o suficiente pra virar família. Chamava de “mainha”, mas, ao que parece, isso também começou a incomodar. Foi levado, transformado em troféu de bondade, vitrine de virtude pra internet. E o país que o ouviu a história de como ele foi levado, foi achando graça, sem perceber que assistia a mais um capítulo da velha novela brasileira: o branco que salva, o negro que deve ser salvo...

Por subentender a cor do menino, a história revela todas as cores do Brasil. E talvez, se ele fosse branco — ou um dos netinhos dela, levados da família da mesma forma — o caso teria outro nome: sequestro. Mas aqui, quando a pele é escura e o sotaque é arrastado, chamam de “artes de Leonardo” (que saiu da Lista Suja do trabalho análogo à escravidão após acordo com MPT).

No fim, esse episódio diz mais sobre o país do que sobre Poliana. Um país que ainda chama de preguiça o descanso, de cuidado a domesticação e de amor o que, na verdade, é domínio. Um país que acha bonito “levar pra brincar” e até se oferece por uma situação similar, mas continua incapaz de devolver — com respeito — a humanidade que toma à força.

 


Laís Sousa

Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!
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