O que vale mais hoje, a dignidade ou o clique?

Ontem, passando pelo Anel Viário, vi que o trânsito estava lento mesmo fora do horário de pico. Pessoas se acumulavam em círculo e havia um camburão. Imaginando o pior, senti um frio percorrer minhas costas. Minha primeira reação foi procurar o que havia acontecido nos blogs da cidade, porque, incrivelmente, eles conseguem noticiar tudo em tempo real. Às vezes tenho a impressão de que publicam algo até antes de acontecer. Infelizmente, minha intuição estava certa: um caminhão-pipa atropelou uma jovem de 22 anos que voltava de uma entrevista de emprego.  Ela estava em uma moto de aplicativo. O veículo derrapou e não houve tempo para nenhum dos dois motoristas desviar. O condutor da moto entrou em estado de choque, passou mal e foi levado ao hospital.

O que mais me chamou a atenção, no entanto, foram as dezenas de pessoas não apenas reunidas, mas com os celulares na mão, fotografando o corpo e os restos da menina que ainda estavam no chão. Alguns blogs chegaram a publicar a imagem (com censura), mas não deixo de me perguntar: até onde se cruza a linha entre o respeito pela vítima e a necessidade de informar? Será que mesmo mortos não teremos paz? Não conseguiremos escapar dos flashes, dos cliques apressados, dos vídeos tremidos? Tudo com o único objetivo de ser compartilhado, noticiado, engajar. Circular nos grupos de WhatsApp para que, ao mesmo tempo em que as pessoas se comovem, também pensem: “ainda bem que não fui eu”.

Em um artigo muito interessante, que pode ser lido aqui, os autores discutem como a indignação contra a exposição de pessoas mortas costuma se manifestar apenas quando se trata de figuras públicas. Ela cita Marília Mendonça e Cristiano Araújo, que tiveram seus direitos violados e geraram comoção, com pedidos para que suas fotos não fossem divulgadas. Já nos comentários de um post do Instagram da jovem que faleceu, não encontrei sequer uma crítica sobre o limite ético da divulgação da imagem. Pelo contrário, havia comentários como: “pra ver o vídeo, tem que ter estômago”. Nenhuma crítica à postura dos veículos. Como se, no anonimato, a humanidade fosse um direito perdido. Como se alguns corpos valessem menos que outros.

A legislação brasileira afirma que os direitos de uma pessoa cessam com a morte. Mas o que acontece quando a dignidade é violada depois do fim? A exposição de cadáveres na mídia causa sofrimento profundo às famílias. Mesmo que a personalidade jurídica se encerre, direitos ligados à honra, privacidade e imagem permanecem como extensão da dignidade do falecido. Cabe aos familiares buscar a Justiça para proteger a memória do ente querido. É o chamado “dano reflexo”, que recai sobre quem fica e prolonga a dor.

Assim, familiares podem acionar a Justiça para proteger a memória e o patrimônio moral do ente querido. O dano não atinge apenas o falecido, mas também quem fica. A luta judicial, nesses casos, não é em nome do morto, mas em defesa da lembrança e do respeito que se deve a quem partiu.

Enfim. Saí dali enojada, sem nem me aproximar da cena. Não pelo sangue ou pelo acidente, mas pela frieza dos que transformaram, mais uma vez, a tragédia em espetáculo. Pela compulsão em registrar e compartilhar, enquanto uma família, hoje, chora. Como estudante de jornalismo no último semestre, não consigo deixar de me questionar: até quando o direito de expressão será usado como justificativa para atropelar a dignidade e a privacidade humanas?

*Esta é uma opinião assinada e publicada por Ane Xavier, estudante de Jornalismo na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), e, portanto, é de inteira responsabilidade da mesma e não necessariamente reflete os valores e as opiniões do veículo de comunicação onde exerce seu trabalho.


Ane Xavier

Estudante de Jornalismo e Ciência Política, apaixonada por comunicação e sempre com um livro em mãos. Também fala sobre leituras no instagram @booksbyane.

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