A Caça Não É às Bruxas, É aos Cúmulos
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Disseram que está aberta a temporada de caça às bruxas. É mais palatável assim — a velha metáfora do fogo purificador, das fogueiras que nunca se apagam. Só que, observando direitinho, não tem “água no poço, uma bela plantação, marca de nascença, habilidades com fitoterapia, conexão com a natureza”... O que há é outra coisa: a caça é aos cúmulos. Sim, aos cúmulos. Aqueles que, de tão evidentes, deixam o ar irrespirável e a inteligência constrangida.
Vejamos: Léo Lins, o comediante que trata o sofrimento como matéria-prima e a dor alheia como palco. Não faltam exemplos — piadas com a tragédia da Boate Kiss, com pessoas com deficiência, com negros, homossexuais, obeso, com vítimas de abuso sexual, pedofilia, com a morte. Quando a “graça” precisa de um grito abafado para funcionar, não estamos mais falando de humor, mas de autópsia. E, ainda assim, a defesa: “É só piada”. Como se apologia a crimes e banalização da violência fosse uma espécie de atestado de liberdade, e não o sintoma de uma sociedade que ri quando deveria se envergonhar.
Enquanto isso, Hytalo Santos — o digital influencer do tipo que chama atenção pelas ostentações e pelos memes —, é investigado por envolvimento com menores. A fronteira entre influência e aliciamento, tão tênue quanto perigosa, parece ter sido ignorada no caminho da busca por likes e status. Aqui, o cúmulo não é apenas o crime em potencial, mas o modo como se normaliza o abuso travestido de celebridade.
E então, como não poderia faltar nesse enredo tragicômico, entra em cena Carla Zambelli — não mais como deputada, mas como personagem de uma tentativa desajeitada de fuga. Correu armada pelas ruas e agora corre da Justiça, como quem acredita que a cidadania italiana é passaporte diplomático para a impunidade. Aqui, o cúmulo é a cara de pau, a certeza de que a lei se curva a quem a desdenha.
Três histórias distintas, aparentemente desconexas, mas que se cruzam numa encruzilhada cínica: todas revelam uma mesma anatomia moral, onde o excesso não só é permitido, mas incentivado. O excesso de crueldade disfarçada de humor; o excesso de poder travestido de influência; o excesso de arrogância sustentado pela convicção de que quem tem palanque não responde por seus atos.
Quando apontamos para esses cúmulos, surgem os defensores da liberdade, mas não aquela, a verdadeira — a que busca justiça, igualdade, dignidade. Falam da liberdade de fazer piadas que matam, de exercer influências que corrompem, de legislar contra o país e ainda querer escapar da lei. Não se trata, portanto, de uma caça às bruxas. Trata-se de uma tentativa, ainda que tardia, de exigir que o riso tenha limite, que a fama tenha responsabilidade, que o poder tenha consequência.
O mais triste — ou o mais perverso — é perceber quem ainda aplaude. A plateia que gargalha da piada sobre a tragédia, que segue, curte, compartilha a vida que ilude e que, diante de tentativa de fuga, solta o clássico: “é perseguição política”.
O Brasil não caça bruxas. O Brasil apenas tolera tantos cúmulos por tanto tempo que, quando alguém tenta apontá-los, soa exagerado. Soa como perseguição, como censura, como histeria. Menos como em casos como o de Poze do Rodo sendo preso algemado e sem camisa - sabemos bem o que é…
Estamos passando por um tempo de chamado tardio à responsabilidade. Afinal, quando se normaliza o cúmulo, quando se ri do horror, quando se foge da justiça, o que resta não é liberdade. É só um país em que a civilidade foi trocada por trending topics.
E quando a fogueira se acende, não é para queimar bruxas, mas para iluminar o quão fundo caímos achando que estávamos só rindo, só sendo influenciados, só sendo representados.
Mas não estávamos. Estávamos, todos, assistindo ao espetáculo grotesco de quem acha que cúmulo é só exagero, e não aquilo que já não dá mais para tolerar.

Laís Sousa
Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!@laissousa_
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