Com a “Lei Anti-Oruam” em Vitória da Conquista, o governo municipal joga a culpa na conta dos artistas e terceiriza sua responsabilidade

O tráfico e o crime existem por conta dos artistas que retratam essa realidade ou por que o governo não consegue bater de frente com esse problema? Nós sabemos a resposta.

Foi sancionado nesta terça-feira (22) pela prefeita de Vitória da Conquista, Ana Sheila Lemos (União Brasil), a Lei nº 2.982/2025, de autoria do vereador Edivaldo Ferreira Júnior (PSDB), que torna proibido contratar shows de artistas que façam apologia ao uso de drogas ou ao crime organizado para o público infantojuvenil. A medida, ao menos na teoria, serve para proteger as crianças e jovens de um problema que não deveria ser responsabilidade dos artistas; o crime e a realidade vivida em periferias e favelas de cidades de todo o país.

A princípio, a lei vale somente para apresentações pagas com o dinheiro público (como as festas de São João, por exemplo), enquanto as apresentações continuam sendo permitidas para iniciativas privadas e sem ligação com a Prefeitura. Caso o acordo não seja cumprido, o contratado terá o contrato rescindido e receberá uma multa de até 100% do valor previamente combinado. O dinheiro será encaminhado para a verba do ensino fundamental da rede municipal de ensino de Vitória da Conquista.

Vamos por partes. 

Primeiro que, no Brasil, pode-se dizer que o crime organizado e o tráfico de drogas são praticamente uma marca registrada do país. Essas práticas existem com força desde as décadas de 60 e 70, durante a Ditadura Militar, quando a superlotação dos presídios contribuíram para a formação de grupos criminosos, como o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro. De forma parecida, na década de 90, em São Paulo, surgiu o Primeiro Comando da Capital (PCC), que inicialmente era um grupo que protestava contra as condições carcerárias ruins e que posteriormente se expandiu para além das prisões.

Eu poderia citar nesse texto vários exemplos do crime organizado que foram retratados por artistas ao longo dos anos. No cinema, temos o aclamado “Cidade de Deus”, de 2002, que documenta o crescimento de facções dentro da comunidade, no Rio de Janeiro, e que traz a história de Zé Pequeno, um traficante que viu e viveu o crime desde criança. Aqui, entram diversos fatores sociais. Um deles é o descaso do governo – municipal, estadual e federal – com lugares às margens da sociedade (o que gerou a criação do termo “marginal”, que veio do latim "marginalis", para quem vem dessas localidades), como as favelas, onde se tem uma baixa qualidade de vida e baixa esperança. Com um pequeno acesso à Educação e ações sociais gratuitas, a exemplo das aulas de Música, artes marciais e outros esportes, e já vivendo dentro daquela realidade, o jovem é seduzido pela premissa de ter dinheiro fácil ao estar dentro do crime.

A exibição do longa não foi proibida “para proteger crianças e jovens”, muito pelo contrário, o mundo inteiro viu e elogiou o olhar crítico dos autores para aquela realidade. O filme recebeu quatro indicações ao Oscar, apesar de não ter vencido nenhuma. 

Trazendo para o outro lado da coisa, ainda nas telonas, tivemos “Tropa de Elite”, lançado em 2007, que mostra a batalha entre a Polícia e os traficantes no Morro da Babilônia, também no Rio de Janeiro, mas pela visão dos policiais. Alguns temas se entrelaçam com Cidade de Deus, como os aspectos sociais, mas aqui se percebe que o crime é uma faca de dois gumes e não há só um culpado. Vemos policiais corruptos que praticam crime da sua própria maneira através da propina, cobrando taxas das pessoas que vivem nas comunidades para o uso de coisas como internet, gás, tv a cabo, entre outras coisas, além de uma “taxa de proteção”, controlando aquela área. 

No segundo filme da série, o personagem principal, Capitão Nascimento, assume o cargo de subsecretário de Inteligência na Segurança Pública do Rio de Janeiro após ser afastado da Tropa de Elite. Agora, dentro do sistema, ele se decepciona ao perceber que a violência e a corrupção nunca deixarão de existir na prática, pois elas existem no próprio sistema e trazem benefícios para algumas pessoas incluídas neste grupo. 

O sistema é foda, parceiro. 

Chegamos aos tempos atuais, com a música. Quer dizer, na verdade, o crime organizado e o tráfico sempre foram temas frequentes nas canções de diversos estilos musicais. O mais óbvio deles é o rap, com os nomes clássicos, como Racionais MC’s, Sabotage e Facção Central, que expressaram e retrataram a violência policial contra negros e periféricos em vários momentos da história. Trazendo para uma mistura entre o rap e o rock, o Planet Hemp é um grande defensor público da legalização da maconha no Brasil. Os membros da banda, inclusive, já foram presos por defender tanto a causa, mas isso não os intimidou. 

A novidade é que agora retratar a realidade do crime é… crime. Isso porque desde o começo deste ano há uma polêmica em volta do rapper ORUAM. O artista é conhecido por exaltar a favela, lugar de onde veio, em suas letras, entretanto, vez ou outra também dá declarações polêmicas sobre o seu pai, Marcinho da VP, líder de uma das maiores facções criminosas do Brasil e que está preso desde agosto de 1996. Um projeto de lei para proibir apresentações do artista tramita a nível nacional. Ele surgiu em São Paulo, proposto pela vereadora Amanda Vetorazzo (União Brasil) e recebeu o nome informal de “lei anti-Oruam”. 

Não sou favorável ao Projeto, pois, em minha visão, ele tenta, de certa forma, censurar o que de fato é a realidade de algumas pessoas, como viver em meio ao crime organizado não por uma opção, mas porque é o que podem fazer nas condições que tem. Sem educação, sem cuidado, sem ajuda e com a necessidade de colocar dinheiro e comida em casa, o tráfico se torna uma saída para jovens sem esperança com a vida. Porém, ao colocar a culpa exclusivamente nessa parcela da população, o Governo tenta cobrir o sol com a peneira e se isentar da responsabilidade de retirar esse público desta realidade através de outros meios que já citei, como projetos culturais e esportivos.

Impedir apresentações com a proposta de “proteger crianças e adolescentes” é tentar fazer uma cortina de fumaça para um problema muito maior que é de responsabilidade das autoridades. Isso não significa que eu esteja defendendo o crime ou o Oruam, que, sim, tem o direito de se expressar, mas que possui falas e decisões que o levam para o centro da mídia e faz com que a ideia do Projeto seja reforçada. Seus posicionamentos o fizeram ser um alvo político que é usado como referência para generalizar um comportamento.

Ao mesmo tempo que sanciona um Projeto de Lei contra apresentações públicas de artistas que façam apologia ao uso de drogas, a Prefeitura flerta – não oficialmente – com a contratação de grandes nomes do sertanejo para as próximas festas de São João, em junho deste ano. O gênero musical, após a explosão do sub-gênero “sertanejo universitário”, basicamente é uma propaganda grátis para o álcool em suas letras. O álcool, que é praticamente “uma droga permitida” e que mata mais de 100 mil pessoas no Brasil a cada ano, de acordo com um dado divulgado pela Agência Brasil, em novembro de 2024. De forma mais simples, a cada hora, em média, 12 pessoas morrem por conta da bebida no país. 

Ué? Mas então cantar aquelas frases clichês de sertanejo sobre beber até cair, até esquecer sua/seu ex, etc e tal, numa festa pública com crianças e jovens também não deveria ser considerado apologia ao uso? Enfim... Para mim, parece uma lei seletiva, que vale apenas para grupos mais frágeis, enquanto para outros está tudo certo. Não é segredo que o sertanejo hoje tem forte influência do agronegócio e os seus principais nomes não escondem sua admiração pelo líder da direita do Brasil. E eu duvido que para eles exista coisa melhor do que mandar os "marginais" de volta para as margens da sociedade com a desculpa dos bons costumes e da moral.

Mas tudo bem, eles estão apenas protegendo os jovens e as crianças. Os nossos heróis salvaram a cidade mais uma vez. Viva!


Danilo Souza

Estudante de Jornalismo pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), músico e produtor audiovisual independente.

danilosouza.jornalismo@gmail.com (Email)
@danilosouza.jornalismo (Instagram)

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