1984 caracteres e nenhuma interpretação
Foto: Reprodução
Aconteceu de novo. Um homem fez uma piada — inteligente, provocativa, cheia de referências — e o Brasil respondeu como quem assiste novela na última semana: correndo pra espalhar o furo, mesmo sem entender o enredo.
Felipe Neto — sim, aquele que uns amam, outros odeiam, mas todo mundo conhece — decidiu brincar de distopia. Inspirado em 1984, de George Orwell, anunciou sua “pré-candidatura à presidência em 2026”. Com direito a fala truncada em “novafala”, referências ao Big Brother e um tom que só faltava gritar: “Isso é uma sátira, meu povo!”
Mas bastou publicar que já tinha jornalista tropeçando no teclado, mancheteando o delírio com a seriedade de quem cobre Brasília. Não demorou pra a notícia voar mais que fake news em grupo de família: “Felipe Neto anuncia candidatura à presidência.” Pronto. O caos estava formado.
A imprensa — essa que deveria ser farol — virou poste: só repete a luz que vê piscando sem saber de onde vem. Não contextualizou. Não interpretou. Nem parou pra perceber que a referência era a uma distopia onde a linguagem é controlada, a verdade é manipulada e o Estado vigia tudo. Exatamente como funciona a internet quando a gente troca interpretação por engajamento.
Felipe, claro, matou dois coelhos com uma única postagem (esclarecida por outra depois): anunciou a chegada de um audiolivro na plataforma Audible (spoiler: é 1984, dramatizado com Lázaro Ramos e elenco de peso) e expôs a preguiça estrutural de uma mídia que muitas vezes deixa de informar para simplesmente noticiar. Ou melhor, replicar. Porque nem notícia aquilo era. Era só uma piada — mas feita com a precisão de quem sabe onde a crítica precisa doer.
A cereja do bolo? Gente criticando pelos cotovelos, passando vergonha no on. Como se a seriedade não estivesse exatamente no que ele escancarou: nossa incapacidade coletiva de interpretar uma metáfora. Estamos sendo vigiados, manipulados, enganados… e ainda batemos palma para o show. Ou pior, pra manchete errada.
No fim, o verdadeiro escândalo não é a “candidatura de Felipe Neto”. É nossa insistência em agir como os personagens de Orwell: repetindo o que ouvimos, confiando no que nos dizem, ignorando as entrelinhas.
Talvez 1984 não seja uma ficção tão distante assim. Talvez o Felipe só tenha nos mostrado, mais uma vez, que o futuro distópico já chegou. E está todo mundo postando sobre ele… sem ter lido o livro.

Laís Sousa
Jornalista-marketeira-publicitária comunicando em redes sociais de segunda a sexta. Escritora e viajante nas horas cheias e extras. Deusa, louca, feiticeira com trilha sonora em alta. Leitora, dançarina e pitaqueira por esporte sorte. Vamos fugir!@laissousa_
laissousazn@gmail.com