A demonização de Paulo Freire e as piadinhas sobre as universidades públicas têm a mesma raiz: a ignorância
Não consigo achar determinadas coisas engraçadas. Foi o que eu disse a uma amiga, quando ela me enviou um reel de um perfil que nós duas seguimos no Instagram. No vídeo, pessoas consideradas alternativas, reunidas, dançando, cantando e tocando instrumentos. Havia uma fogueira e alguém meditava. Algum problema? Nenhum, não fosse a legenda dizendo que aquela turma se tratava de alunos do bloco de humanas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Num comentário fixado, o administrador do perfil esclarece que o vídeo não foi gravado na Uesb e em nenhuma universidade. E adverte: “Descansem, é só um meme”.
Eu não descansei. Não “militei” no post, mas fiquei incomodada. Infelizmente alguém, num belo dia de falta do que fazer, resolveu inventar que os alunos dos cursos de ciências humanas, como sociologia, filosofia, história e jornalismo (que alguns dos meus professores diziam que está mais para ciências sociais do que para humanas), não estudam. Simples assim, numa generalização daquilo que talvez tenha visto uma pequena parcela fazer. Isso se espalhou entre aqueles que jamais pisaram numa universidade, que dirá passar pelo que passamos!
Quando eu era criança ouvia os parentes mais velhos dizerem que um determinado político, de uma cidade vizinha, ficou doido de tanto estudar. Por várias vezes, desde o segundo semestre, no meu tempo de graduação na universidade, me lembrei do tal homem que teria enlouquecido. E se eu não endoidei também foi por um triz.
Enquanto egressa do curso de jornalismo de uma universidade pública, posso garantir: ou você estuda, ou você desiste. Não tem essa de ficar matando aula pra ir “tocar tambor”, “fazer fumaça”, dançar no meio do mato e passar nas avaliações. Além disso, o óbvio: ausência também reprova. Não existe a menor possibilidade de concluir um curso superior sem produzir, sem pesquisar, sem dar resultados.
Vivemos, recentemente, um período complicadíssimo na nossa história, quando intelectuais e artistas eram atacados diuturnamente. Até bem pouco tempo, em qualquer família, ter um filho ou uma filha cursando uma graduação era motivo de muito orgulho. De repente, assistíamos perplexos à propagação de mentiras a respeito das instituições públicas de ensino superior, dos seus professores e dos seus alunos. O que antes era respeitado, passou a ser demonizado. Assim foi também com a cultura, com a arte, de modo geral.
Passamos por uma pandemia e a ciência foi questionada e até descredibilizada. As ideias mais descabidas ganhavam cada vez mais força e muitos adeptos. Uma verdadeira ode à mediocridade, como bem observou, já em 2019, o ator e diretor Wagner Moura, numa entrevista ao Canal Brasil.
Nessa onda de desinformação aumentaram também os ataques ferozes ao educador pernambucano Paulo Freire. Afrontas tão infundadas, que só se justificam mesmo com o processo de substituição dos bons argumentos pela mera reprodução do pensamento alheio. Quem, nos últimos tempos, não leu ou ouviu alguém dizer que o teórico acabou com a educação brasileira?
Defensor de um modelo escolar humanista, Freire foi crítico daquilo que alguns chamam de educação bancária, que é o processo no qual o professor ensina e o aluno deve aprender, numa espécie de transferência de conhecimento. Um formato onde não há espaço para questionamentos ou problematização por parte do estudante, dificultando o desenvolvimento de uma consciência crítica.
O pensador acreditava também que se a realidade do estudante fosse considerada, ele melhor assimilaria o conteúdo. E foi assim, levando em conta o cotidiano das pessoas que, em 1963, em Angicos, interior do Rio Grande do Norte, Paulo Freire conseguiu alfabetizar trezentos alunos em quarenta horas. A maior parte deles era formada por adultos e trabalhadores braçais. Imagine a maravilha: agricultores aprendendo a escrever palavras como enxada e terra, enquanto os operários da construção civil escreviam “tijolo”, “cimento”, “madeira”, etc. Uma experiência que marcou para sempre a sua carreira.
Eu poderia falar ainda sobre a perseguição que ele sofreu logo em seguida, quando teve início a Ditadura Militar, sobre sua prisão e também sobre os seus quinze anos de exílio, mas esse texto ficaria muito longo.
Por hora, destaco que Paulo Freire foi autor de vinte e cinco livros, professor na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo, nas universidades de Harvard, nos Estados Unidos, e Cambridge, na Inglaterra.
É o educador brasileiro mais citado em teses e dissertações no mundo. Recebeu mais de quarenta títulos de Doutor Honoris Causa, em importantes universidades, como Oxford, na Inglaterra, e Coimbra, em Portugal. A Pedagogia do Oprimido, um dos destaques da obra do pensador, é também um dos dez livros mais lidos nas universidades de língua inglesa.
Obviamente as ideias e os ideais de Paulo Freire não devem ser unanimidade. Podem ser questionados e criticados, mas o que vemos são verdadeiras agressões à sua memória.
É realmente incrível que um pensador brasileiro tão renomado e reconhecido internacionalmente tenha a sua obra ridicularizada em seu próprio país, por quem nada entende de educação. É lamentável que a sua história esteja chegando às novas gerações de uma forma completamente deturpada.
E é por essas e outras que, mesmo com o risco de parecer exagerada ou mal-humorada, confesso que tenho estado cada vez mais impaciente com “brincadeirinhas” como esse reel sobre a UESB. Talvez porque o processo de imbecilização do sujeito, descambando em absurdos como terra plana, muitas vezes, comece assim: com piadinhas cretinas sobre assuntos sérios.