Preciso me encontrar

Hoje o que eu digo sobre mim um dia me foi dito sobre outro alguém ou outra pessoa. As palavras existiam antes de eu utilizá-las falando de mim. A experiência com a palavra vem antes da experiência pela prática. É uma consequência de ser humano, esse animal racional e verbal. Mas, também pode ser uma armadilha. Se eu posso falar de uma prática sem nunca ter entrado em contato direto com ela, se meu comportamento pode ser afetado por algo ausente que simplesmente é mencionado, eu estou de alguma forma vulnerável. Como colocar a prova algo que parece existir só na minha mente?

E o que é existir em sua mente? Experimentamos o mundo e o descrevemos o tempo todo. Essa narrativa do que vemos, e de como escolhemos contar a nossa história se dá em dois locais: de forma pública ou privada. 

Eu falo sobre o que vejo com o outro, essa é a parte pública. Organizo minha história de forma que seja interessante ou faça sentido para aquele que me ouve. Por ser exposto o outro pode checar se é verdade o que falo, ou se sou alguém de confiança ele pode aprender a agir tomando como exemplo a minha história. Esse movimento foi extremamente importante na história humana. Usar a experiência alheia é o que nos permitiu não ter que ficar reinventando o fogo ou a roda. Bastou um hominídeo fazer isso, repassar a informação e culturalmente aprendemos a usar o fogo. É uma economia de tempo e energia, imagina se não fosse possível transmitir conhecimento? Provavelmente ainda estaríamos nos batendo com coisas simples. A questão é: na mesma medida em que a experiência do outro me ensina, ela também fala do contexto do outro e este pode não ser a mesma realidade que vivo. Se eu não percebo de onde ou outro fala e onde estou posso confundir ambos e por consequência começar a seguir instruções ou regras que não fazem sentido para minha vida.

 


Imagem: Reprodução. Mãos de Escher. O contexto te afeta e você afeta teu contexto.

Narramos também o que vivemos, sentimos e experimentamos para nós mesmos de forma privada. Essa forma de organizar questões internas é o que chamamos de pensamentos. Descrevemos para nós mesmos o que sentimos, mas as palavras que usamos para descrever essas sensações foram aprendidas em outro contexto. Temos também a habilidade de falar de coisas que não estão presentes no momento por terem ocorrido no passado ou especular a respeito de coisas que ainda não aconteceram. Isso faz com que nós sejamos capazes de reagir a coisas que já passaram ou que ainda não vivemos (mas que imaginamos que podem acontecer porque já aconteceram conosco ou com outra pessoa). É aí que para alguns surge uma armadilha: a ansiedade. As combinações de palavras são infinitas e infinita também é a capacidade de imaginar cenários possíveis. Quando não está muito clara a relação entre o que é nosso e o que é do outro, quando não sabemos diferenciar quem somos em diferentes contextos, e quando nos prendemos demais a narrativa e de menos ao contato com o que nos cerca no momento presente, é aí que uma ansiedade natural pode se tornar patológica. 

Outra característica presente em pessoas ansiosas é a ruminação. Esta consiste em se prender e repetir narrativas e pensamentos que potencializam as sensações desagradáveis. Por exemplo, pensar repetidamente sobre uma situação em que você sofreu de maneira a sofrer mais porque não consegue se afastar da lembrança. A ruminação impede que se faça algo porque prende na repetição da narrativa. E novamente, tudo que aconteceu, mesmo que conosco, diz respeito a uma vivência específica e que talvez não devesse ser generalizada para outras situações. Isso traz uma implicação: nem sempre nossos pensamentos serão a verdade e nem sempre vão se sustentar fora do privado e em um contexto real. O que eu sinto é importante, mas como eu aprendo a interpretar o que sinto pode ser equivocado e pode descrever algo irreal. Sim, é algo que está na sua cabeça. Mas não é porque está na sua cabeça que não é importante.

Certa vez no ensino fundamental escrevi um texto em que falava algo como “saudade do que não vivi”. Lembro da correção da professora que dizia claramente “Maiana, não é possível sentir falta de algo que não se viveu”. Na minha cabeça fazia sentido, eu poderia nunca ter vivido, mas eu sentia como se conhecesse porque eu conseguia imaginar claramente em minha cabeça como seria. Eu tinha lido e ouvido sobre e a minha personagem pensava como eu e gostaria de ter tido a experiência. Eu não soube deixar claro ali o que era desejo e o que era experiência (que é o que a saudade exige). Ao mesmo tempo que hoje entendo a Maiana criança que narrava coisas complexas para si a ponto de não entender o que sentia mais, eu entendo a professora que chamava para a realidade e pedia que eu me atentasse a fatos. O que sentimos tem uma função e importância para nós, mas é no contato com o contexto e com a realidade que podemos colocar a prova se o que nos faz sofrer tem base na realidade ou não. Exemplifico: imagine uma pessoa que se sente incompetente em uma determinada área. Ela fala para si mesma que é incapaz e rumina sobre como tudo dará errado. Se ela tenta e observa o resultado poderá avaliar o impacto da ação dela sobre o mundo e poderá provar a si que apesar de fazer sentido, aquele pensamento não era algo em que ela deveria acreditar.

Pensar no que não está presente foi importante na evolução. Talvez seja por isso que é tão difícil deixar de ouvir essas narrativas e entrar em contato aqui e agora com o que nos cerca. Nem sempre será possível experimentar o presente, mas sempre que possível que o façamos. É no contato com a experiência, e não com o que foi nos ditos sobre ela, que aprendemos de fato sobre nossas relações e sobre nós. Autoconhecimento entra aqui não só como curiosidade, mas como uma forma de proteção da nossa saúde. E você? Já aprendeu a separar o que é seu e o que é do outro? Sabe diferenciar o que você narra com base no que viveu e o que te contaram? Tudo bem ainda não saber tudo, eu ainda estou aprendendo sobre mim também. Vou continuar aprendendo enquanto estiver aqui.


Maiana Pereira

Psicóloga, baiana, feminista e palestrinha que ama dar um pitaco. Falo sobre os cotovelos sobre tudo que me move. Sou daquelas que a vida tem uma trilha sonora própria. Quero saber mais, ouvir mais, ver mais, ler mais, ver como cada contexto se relaciona. Vem comigo?
Conheça também meu site https://www.maianapereirapsi.com/

Comentários


Instagram

Facebook