TANTO ÓDIO NOS ENCHE DE MEDO
Foto: GETTY IMAGES
Por Lays Macedo
Tristes acontecimentos para nós, mulheres. Tristes para toda a sociedade, já que a dignidade da pessoa em vulnerabilidade é sempre negociável e todos nós perdemos com isso de alguma maneira.
Na semana passada, uma juíza em Santa Catarina tentou, durante audiência, desencorajar uma criança de 11 anos de fazer um aborto legal depois de uma gravidez fruto de estupro. A Lei, no Código Penal brasileiro, garante o direito ao aborto legal a esta menina sem qualquer necessidade de apreciação jurídica. Houve várias negligências no caso, inclusive pelo procedimento não ter sido feito imediatamente ao ser procurada assistência médica. A juíza e a promotora, operadoras das leis, tentam convencer a criança a passar por todas as etapas de uma gravidez e de um parto, expondo-a a riscos ainda maiores e mantendo-a num abrigo para menores, longe da mãe, há mais de um mês. Mulheres privilegiadas violando o direito de uma menina já tão violentada apesar da pouca idade. Como isso é possível?
Ainda na semana passada, uma procuradora municipal de Registro, interior de São Paulo, foi brutalmente espancada por um colega, enquanto trabalhava, após ter aberto um processo disciplinar contra o agressor devido à sua postura agressiva no ambiente de trabalho com outra colega. Há muitos vídeos da ação do criminoso e imagens das lesões resultantes para a vítima. A situação se passou numa repartição pública. O agressor trabalhava com a vítima. A vítima tinha usado sua voz para denunciar abusos cometidos pelo agressor anteriormente. O agressor tentou, fisicamente, silenciá-la.
Antes de semana chegar ao fim, outra notícia terrível tomou conta das redes sociais. A atriz Klara Castanho, de 21 anos, se viu obrigada a divulgar uma carta em que revelava ter sido vítima de estupro, engravidado e decidido entregar a criança para adoção seguindo todos os trâmites legais. A atriz não queria expor esse episódio de sua vida, mas sites e redes de fofocas trouxeram não só a história a público, mas também especulações e ataques à atriz.
Não há justificativas. É ódio mesmo. Homens, e mulheres também, odeiam mulheres. Somos odiadas por sermos mulheres dentro da construção patriarcal. Odiadas sempre e furiosamente - a ponto de sermos estupradas, sexualizadas desde a infância, agredidas dentro do local de trabalho, desrespeitadas durante momentos de dor.
O fato de aprender amar mãe, filha, irmã não acaba este ódio. O fato de se sentir atraído sexualmente por mulheres não acaba este ódio. O fato de se revoltar com a manchete da violência não acaba este ódio. O desprezo ainda existe quando você relativiza: "ela não foi estuprada", "ela já sabia o que fazia", "aborto é errado", "o cara perdeu a cabeça", "ela provocou", "ela poderia aguentar mais um pouquinho", "ela não tem humanidade", "ela está exagerando"... o "ela" em questão pode ter sido espancada, estuprada, revitimizada, ofendida, perseguida, ter 10 anos, morar numa mansão, ser doméstica, casada, viver em aldeia, ser doutora, ter deficiência... nada disso blinda quem é mulher. O ódio está lá, sempre presente nos apontamentos, recebimentos, olhares, exposições, julgamentos, descréditos, negativas.
O que sobra para nós depois da violência é sempre mais violência.
Cometida pelo agressor novamente.
Cometida pelas instituições de defesa.
Cometida pelas pessoas relativizando a situação.
Cometida por toda tentativa de silenciamento.
Tanto ódio nos enche de medo.
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Sobre a autora: Lays Macedo é jornalista - orgulhosa por ser da Uesb - e estudiosa do feminismo - ativa e atuante. Também faz parte do quadro da segurança pública da Bahia. Adora conversas e tudo aquilo que disseram para ela que mulher não pode.
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