Ensurdecer a escola é garantir direitos: Libras, linguagem e identidade surda no centro da educação inclusiva

  • Júnior Patente
  • Atualizado: 24/12/2025, 03:05h

Na edição especial de aniversário de um ano do programa Inclusão em Foco, exibido pela Mega Rádio, a entrevista com o professor e doutor em Educação Tiago Ribeiro, do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), lançou luz sobre um tema central para a justiça social no Brasil: o direito das crianças surdas ao acesso pleno à linguagem, à cultura e à construção positiva de sua identidade.

Ao tratar da aquisição da linguagem pela criança surda, Tiago Ribeiro foi direto ao ponto ao expor uma realidade ainda pouco enfrentada pelas políticas públicas: a maioria das crianças surdas nasce em famílias ouvintes que não dominam a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Essa ausência de uma língua acessível desde a primeira infância compromete não apenas o desenvolvimento linguístico, mas também o emocional e psicossocial dessas crianças. Enquanto crianças ouvintes aprendem a falar pela escuta cotidiana, a criança surda presencia bocas se movendo sem que haja, de fato, comunicação. Falta o input linguístico visual, essencial para sua constituição como sujeito de linguagem.

Nesse cenário, a escola assume um papel decisivo. Para o educador, a escola bilíngue — ou mesmo a escola inclusiva que se proponha verdadeiramente inclusiva — precisa ser um espaço privilegiado de interlocução em Libras, indo muito além da simples transmissão de conteúdos. “Ensinar não é apenas responder atividades, mas criar ambientes vivos de interação linguística”, defende. Contação de histórias em língua de sinais, jogos, brincadeiras, rodas de conversa e atividades lúdicas são ferramentas potentes para que a criança surda se aproprie da língua e do mundo.

Mas inclusão não se faz isolando a responsabilidade apenas na escola. Tiago Ribeiro reforça a necessidade de uma aliança sólida entre instituição escolar e famílias. Mesmo que a comunicação em Libras seja inicial e simples, ela é fundamental para fortalecer vínculos, garantir afeto e permitir que a criança se reconheça como parte ativa da família e da sociedade. Nesse sentido, iniciativas como cursos de Libras — presenciais e online, como os oferecidos pelo INES — precisam ser ampliadas e valorizadas como política pública.

Outro ponto central da entrevista foi a defesa de um currículo que contemple a cultura surda. Para o professor, “ensurdecer o currículo” significa inserir a arte surda, a poesia em Libras, a literatura surda, a história das lutas e conquistas da comunidade surda e a representatividade de pessoas surdas nos mais diversos campos sociais. Trata-se de romper com um modelo educacional que invisibiliza essas vivências e insiste em medir o estudante surdo a partir de parâmetros ouvintes. Sem representatividade, não há autoestima; sem autoestima, não há aprendizagem plena.

A discussão também avançou sobre a convivência entre crianças surdas e ouvintes nas escolas inclusivas. Para que haja interação genuína, a Libras precisa circular entre todos. Não é aceitável que apenas a criança surda tenha que se adaptar, enquanto os colegas ouvintes permanecem alheios à sua língua. O bilinguismo deve ser uma via de mão dupla. Estratégias simples, como transformar a sala de aula em um espaço visualmente bilíngue, criar inventários de objetos em português e Libras e promover oficinas lúdicas de língua de sinais, fortalecem vínculos e democratizam a comunicação.

A brincadeira, segundo Tiago Ribeiro, ocupa lugar central nesse processo. Longe de ser um mero passatempo, o brincar é um momento pedagógico poderoso, no qual conceitos, regras sociais, valores e linguagem são construídos de forma orgânica. Para a criança surda, brincar em Libras, com o corpo em movimento, amplia o vocabulário, estimula o pensamento simbólico e reforça a compreensão de que o corpo é lugar de linguagem. Afinal, a Libras é uma língua viso-espacial: não existe sem expressão corporal, sem movimento, sem presença.

O educador também destacou a importância de práticas pedagógicas baseadas na concretude e na visualidade. Trabalhar com objetos reais, experiências sensoriais, materiais manipuláveis e registros visuais favorece o aprendizado, especialmente para crianças que não tiveram acesso precoce à língua de sinais em casa. A sala de aula, nesse sentido, deve se tornar um verdadeiro ateliê de descobertas, onde aprender é vivenciar, experimentar e interagir.

Murais, registros fotográficos e materiais visuais permanentes na escola também foram apontados como dispositivos fundamentais para fortalecer a identidade surda. Ao ver pessoas surdas ocupando espaços de destaque — no esporte, na ciência, na arte, nos movimentos sociais — a criança surda constrói uma imagem positiva de si mesma. A mensagem é clara: ser surdo não é ser menos, é ser diferente, com uma língua, uma cultura e uma história próprias.

Ao comparar escolas bilíngues e escolas inclusivas, Tiago Ribeiro reconhece os desafios de um país com dimensões continentais como o Brasil. Nem sempre é possível oferecer uma escola bilíngue específica. No entanto, ele alerta: inclusão sem Libras, sem cultura surda e sem pedagogia visual não é inclusão, é exclusão disfarçada. A escola inclusiva precisa se “ensurdecer”, permitindo que o conhecimento circule também na língua do estudante surdo.

Por fim, o professor ressaltou o papel fundamental dos professores ouvintes, dos intérpretes de Libras e dos professores surdos na construção de ambientes verdadeiramente inclusivos. O intérprete é um mediador cultural, não um substituto do professor. Já o docente ouvinte precisa assumir o compromisso de se tornar bilíngue, compreendendo a visualidade como potência pedagógica para todos os estudantes. E o professor surdo é referência linguística, cultural e identitária, cuja presença na escola é indispensável.

A entrevista encerra deixando um chamado coletivo: inclusão se constrói em rede, com diálogo, formação continuada e compromisso político. Ensurdecer a escola é um ato de justiça social. É reconhecer que o direito à linguagem, à identidade e à educação de qualidade não pode ser negado a nenhuma criança. A luta pela inclusão da comunidade surda é, acima de tudo, a luta por uma sociedade mais democrática, diversa e humana.

Assista a entrevista completa

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