Linguagem, brincadeira e identidade: caminhos para a educação de crianças surdas na escola bilíngue

  • Júnior Patente
  • Atualizado: 22/12/2025, 08:51h

A maioria das crianças surdas nasce em famílias ouvintes que não dominam a Língua Brasileira de Sinais (Libras). Esse dado, muitas vezes invisibilizado, tem impacto direto no desenvolvimento linguístico, cognitivo e social dessas crianças. Sem a interação precoce em uma língua acessível, elas podem enfrentar barreiras tanto para adquirir a Libras quanto para aprender o português, que chega majoritariamente pela via auditiva no contexto familiar.

Segundo o doutor em Educação Tiago Ribeiro, professor e coordenador pedagógico do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), é justamente nesse ponto que a escola bilíngue assume um papel fundamental. “Muitas crianças surdas só terão contato efetivo com uma língua de comunidade na escola, onde podem vivenciar trocas linguísticas reais, em Libras, e aprender o português na modalidade escrita”, afirma.

Mais do que ensinar conteúdos curriculares, a escola de surdos se torna um espaço de construção de sentido. “É na interação com pares infantis e adultos, por meio da comunicação visual e da língua de sinais, que a criança passa a compreender o mundo e a si mesma”, destaca Ribeiro. Esse processo, segundo ele, envolve dimensões sociais, culturais, psicológicas e pedagógicas, indo muito além da simples transmissão de informações.

A brincadeira como eixo da aprendizagem

Dentro desse contexto, a brincadeira ocupa um lugar central. O faz de conta, a imaginação e o brincar coletivo são estratégias potentes para a aquisição da língua e para o desenvolvimento do pensamento. “Brincar é uma forma de a criança experimentar o mundo, criar, conversar e construir identidades. Para a criança surda, isso está diretamente ligado à aquisição da língua”, explica o educador.

Ribeiro defende que atividades pedagógicas precisam ser pensadas de forma contínua e significativa, respeitando o tempo e o percurso formativo das crianças. “Não se pode trabalhar um tema em uma ou duas aulas e achar que ele está esgotado. A aprendizagem, especialmente na Educação Infantil, se dá pela retomada, pela vivência e pela ampliação das experiências”, ressalta.

Vocabulário, autonomia e cotidiano escolar

Entre as propostas apresentadas pelo pesquisador estão atividades simples, mas profundamente conectadas ao cotidiano das crianças. Um exemplo é o trabalho com o vocabulário em Libras a partir das frutas servidas na merenda escolar. Em muitas escolas, profissionais da cozinha não conhecem Libras, o que dificulta a comunicação e limita a autonomia da criança surda.

“Expressar o que quer ou não quer comer pode ser um grande desafio. Trabalhar esse vocabulário por meio de jogos e atividades concretas ajuda a criança a se comunicar melhor, fortalece a autoestima e promove autonomia”, pontua Ribeiro.

A preparação coletiva de uma salada de frutas, por exemplo, permite explorar sinais em Libras, palavras em português, cores, sabores e até conhecimentos sobre a origem dos alimentos. Fotografar o processo e montar um mural com as crianças é uma forma de valorizar a experiência e reforçar a aprendizagem visual.

Continuidade e ampliação dos saberes

Outro ponto destacado pelo educador é a importância de articular diferentes conteúdos a partir de uma mesma experiência. Ao trabalhar frutas, por exemplo, é possível avançar para o vocabulário das cores, utilizando jogos como o da memória e retomando vivências anteriores. “Essa continuidade dá sentido ao que é aprendido e fortalece o percurso formativo da criança”, explica.

Atividades voltadas ao reconhecimento do próprio corpo também fazem parte das sugestões. Por meio de rodas de conversa, exploração visual, desenhos de silhuetas e pintura com tinta guache, as crianças aprendem sinais, ampliam o vocabulário e constroem uma percepção mais consciente de si mesmas. “Conhecer o próprio corpo é uma aprendizagem fundamental, e pode ser feita de forma lúdica, visual e interativa”, observa Ribeiro.

Educação bilíngue como direito

As reflexões e propostas apresentadas reforçam a educação bilíngue como um direito das crianças surdas e como um caminho indispensável para o desenvolvimento pleno. Ao garantir o acesso à Libras desde cedo e ao valorizar práticas pedagógicas visuais, interativas e significativas, a escola contribui para a formação de sujeitos autônomos, críticos e conscientes de sua identidade.

“Não se trata apenas de ensinar língua ou conteúdo, mas de possibilitar que a criança surda se reconheça, se expresse e participe do mundo de forma plena”, conclui Tiago Ribeiro.

Tiago Ribeiro é Doutor em Educação, professor e coordenador pedagógico de Produção de Materiais Didáticos do Departamento de Educação Superior do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES). É autor, com Osilene Cruz, do livro “Práticas pedagógicas no ensino da língua portuguesa escrita para surdos – desafios, experiências e aprendizagens” e, com Aline Gomes da Silva, de “Leitura e escrita na educação de surdos”, ambos publicados pela Wak Editora.

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