Quando o trabalho da pessoa artista é sobreviver

Como o vídeo de Madu Bonifácio reflete a escassez de oportunidades de trabalho na área da cultura
  • Da Mega
  • Atualizado: 01/12/2025, 09:35h

Escrito por Lucas Eduardo

No dia 19 de novembro de 2025, a artista Madu Bonifácio, residente da cidade de São Paulo e estudante de licenciatura em artes, publicou um vídeo na sua conta do Instagram (@madubonifacio_) como forma de expressar sua agonia. Objetiva e com lágrimas nos olhos, a moça diz que não consegue fechar trabalhos há mais de um mês e descreve como tem sido seus cafés da manhã desde o final de outubro: “pipoca, porque é barato”.

            A moça fala no vídeo que se alguém, por um acaso, estivesse pensando em um projeto para decorar a casa, ilustrar uma parede, ou tivesse uma criança que precisasse ser cuidada, ela estaria à disposição para realizar tais trabalhos. O que mais comove no vídeo, partindo do ponto de que a situação toda é delicada, é o fato de que a artista diz que sempre que aparece uma oportunidade para compor sua renda, os trabalhos deveriam acontecer no horário das suas aulas da faculdade: “Eu sempre priorizo meus estudos, mas essa decisão está começando a me pesar um pouco”.

            Desde a publicação do vídeo, a rede social de Madu Bonifácio deu um salto no número de seguidores e de visualizações nas publicações. Em uma semana, a artista conseguiu fechar novos trabalhos, construir novas relações com pessoas do meio artístico e, finalmente, fazer uma feira digna. Em uma publicação mais recente, ela escreve: “Talvez nem todo mundo entenda o que é sonhar em pegar no mercado exatamente o que você quer. [...] Em 25 anos, isso nunca tinha acontecido comigo. E viver isso hoje foi uma das sensações mais gostosas da minha vida”.

            A situação de Bonifácio revela a escassez da estrutura de trabalho formal para artistas no Brasil. A moça conseguiu novas oportunidades de trabalho porque seu vídeo viralizou em uma rede social, e agora, em um mundo sempre conectado como é a realidade de 2025, essa parece ser a métrica a ser alcançada para ter dinheiro na conta sendo uma pessoa trabalhadora artista. A estudante diz no vídeo que aquela gravação era um ato de desespero, porque ela não sabia mais o que fazer para conseguir fechar trabalhos, e por um acaso, é o vídeo dela que viraliza.

            Para pessoas artistas, o trabalho em si de criação e desenvolvimento de obras surge apenas como um detalhe da trajetória profissional, pelo que parece nos dias atuais. Existe um gasto de tempo e energia, caso você queira colocar no seu carrinho do supermercado tudo aquilo que você gostaria de por, onde é preciso desenvolver um portfólio, esperar novos editais de fomento serem lançados, criar projetos bem estruturados que contemplem o objetivo do edital escolhido, utilizar as redes sociais de forma ativa e constante em prol da publicização do seu trabalho, informar-se sobre como o algoritmo funciona e criar postagens que possam utilizar o seu funcionamento a seu favor. Isso tudo, é claro, conciliando com a vida pessoal, que no caso de Madu, ainda tem uma graduação para ser finalizada.

            Para além de todo um esforço pessoal, sob o contexto de ser um trabalho de divulgação do seu currículo profissional, a quantidade de oportunidades para profissionais das artes é limitadíssima. Quando não depende da publicação de editais, depende da manutenção das redes sociais, de criação de portfólio, de contatos com galerias e profissionais da área, de oportunidades de fazer parte de exposições, caso o trabalho se encaixe com a proposta da exposição... Enfim, são inúmeras variáveis possíveis que desafiam a vida da pessoa artista que a única solução coerente é, por vezes, quando nada mais dá certo, a publicação de um vídeo implorando por uma oportunidade. A obra de arte em si fica em segundo, terceiro, quarto plano…

            É possível relacionar essa realidade com a trajetória profissional dos trabalhadores da cultura também. Além das oportunidades limitadas, e de todo um trabalho possível que pode ser feito através de network (rede de contatos) ou pelas redes sociais, a precarização do trabalho é outro fator desestimulante. A maioria das vagas são estágios, com remunerações que não condizem com a inflação do real e sendo limitadas a territórios específicos do Brasil.

            Existem diversas instituições culturais em São Paulo, por exemplo, que divulgam novas oportunidades de trabalho, porém, mesmo as vagas disponíveis em território paulista, questões como a qualidade do currículo, a rede de contatos, as especializações e os títulos acadêmicos são características buscadas pelas empresas, dificultando o acesso de pessoas recém-formadas, ou até em processo de graduação, como é o caso de Madu, que no final do dia, ainda são profissionais que precisam pagar suas feiras, seus aluguéis, suas energias elétricas, suas internets, suas roupas etc.

            No caso da Bahia, instituições como o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), por exemplo, suprem suas necessidades de trabalhadores abrindo processos de contratação em Regime Especial de Direito Administrativo (Reda). Ou seja, contratações temporárias sem garantia de renovação de contrato, deixando os profissionais da cultura do estado à mercê de oportunidades instáveis de trabalho. A situação é tão desesperadora que o Ministério Público da Bahia (MPBA) protocolou uma ação judicial contra o estado e o Ipac, demandando a realização de um novo concurso público para a efetivação de cargos.

 Segundo o site do MPBA, “[...] o Ipac nunca realizou concurso público para admitir novos servidores e tem atualmente em seu quadro funcional pessoas que ingressaram sem concurso cinco anos antes da Constituição de 1988. O próprio Ipac informou que são servidores despreparados ou desatualizados para exercerem as funções na instituição. Os demais foram indicados politicamente ou contratados via Reda. Diante da ausência de profissionais capacitados e da não realização de certame adequado, a promotora aponta ‘a falta de profissionalismo e constância necessários para que o Ipac cumpra com seu objetivo de proteger o Patrimônio Cultural da Bahia, conforme determina o artigo 216 da Constituição Federal’”.

Apesar da ação ocorrida em abril deste ano, explicitando a urgência da publicação de um edital em até 6 meses, ou seja, até outubro de 2025, nenhum concurso público foi divulgado pelo Ipac até o dia de publicação desta coluna. Claro, existem editais abertos para a seleção de novos projetos que envolvem a salvaguarda do patrimônio e a circulação de trabalhos artísticos, como no caso do novo ciclo da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), mas nenhuma ação de contratação definitiva para os profissionais da cultura. Enfim, é com o descaso com os fazedores de cultura e os profissionais responsáveis em comunicar, socializar e preservar os processos culturais que a ação da MPBA serve de incentivo para que essas pessoas continuem na movimentação de fazer o seu trabalho ser visto e reconhecido.

São casos como o de Madu Bonifácio, que utiliza da plataforma ao seu alcance para implorar uma oportunidade ao invés de seguir a cartilha do proletário de se formar, se especializar, obter títulos e adquirir experiências não devem ser vistos como demérito. Nem sempre os processos formais de contratação acontecem da maneira como deveriam acontecer, lembrando que a vida não para nesse meio tempo (nem a chegada dos boletos). Portanto, fazer o que tiver à sua disposição e o que faz sentido para você se tornou a nova regra de sobrevivência no momento de encontrar um novo trabalho. É verdade que não deveria ser uma luta, mas já que se tornou uma, se armar como é possível está valendo enquanto existe mais um dia para ser enfrentado.

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