Quem tem medo da linguagem neutra?
Escrita por Lucas Eduardo
Sancionada nessa última segunda-feira (17/11/25) pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, a nova determinação enquadrada na lei 15.263-2025 proíbe o uso da neutralidade de gênero em documentos redigidos por órgãos públicos. Ou seja, não poderá ser utilizado nenhum pronome neutro de tratamento ou símbolos para identificar um sujeito que não se identifica com nenhum dos dois gêneros socialmente concebidos: masculino e feminino.
A ideia é estabelecer uma base de regras que facilite o entendimento da mensagem, não somente com o veto do uso da linguagem neutra, mas também com o não uso da voz passiva (onde o sujeito recebe a ação ao invés de ser sujeito que a executa) e nem a construção de frases intercaladas. Apesar da assinatura do presidente, da ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos (Esther Dweck), do ministro da Justiça e Segurança Pública (Ricardo Lewandowski) e do advogado geral da União (Jorge Messias), caberá a cada ente federativo definir normas complementares para o cumprimento da lei no âmbito de sua competência.
Representantes da Associação Brasileira de Linguística (Abralin) vêem a medida como um modo arbitrário que engessa a ideia de simplificação da linguagem proposta pelo projeto. “A Abralin discorda frontalmente dessas fórmulas, apesar de ser completamente a favor de uma lei que queria garantir a acessibilidade da linguagem. Mas não dessa maneira, enfiando goela abaixo algumas regras arbitrárias, algumas sem sentido, outras nem tanto”, afirmou em entrevista ao Correio Gisele Rodrigues, uma das integrantes da associação. “Linguagem simples e inclusiva é outra coisa. É poder falar com diferentes públicos. Se eu vou falar com uma comunidade quilombola, eu quero poder usar um termo ou outro que não está no Volp (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa)”.
É pertinente pontuar que o projeto elenca, ainda, uma pessoa ou um grupo de pessoas fiscalizadoras do cumprimento da lei, na qual foi vetada pelo presidente. Ou seja, na prática, a aprovação do projeto não terá serventia, muito menos mudará a forma como os textos estão sendo redigidos. Ainda que isso seja verdade, a consciente atitude de manter o trecho que veementemente proíbe o uso de linguagem neutra em documentos oficiais é um aceno para as partes mais conservadoras da sociedade civil, que já no ano que vem volta às urnas para eleger o novo chefe do Executivo, não podemos esquecer.
A partir da questão em voga, faz-se necessário pontuar que não existe um documento redigido por um órgão público hoje, no Brasil, que utiliza da linguagem neutra em sua redação. Vale reiterar também que, como explicado pela pessoa membro da Abralin anteriormente citada, a linguagem torna-se acessível se a comunicação é pensada para atingir os mais diversos públicos. O que não é o caso de ações dos órgão federativos, visto que não existe uma obrigatoriedade de adaptação dos textos para encaixar-se mais adequadamente com características linguísticas de povos quilombolas, por exemplo.
O trecho do projeto aprovado que exime as entidades de utilizar linguagem neutra, portanto, é visto como uma maneira ineficaz de justificar uma maior acessibilidade, afinal, não existe realidade em que o uso da linguagem é disseminada por documentos públicos e contradiz com o seu próprio objetivo de ser acessível. Existem problemas fantasmas que somente saem da boca e da caneta de parcelas mais conservadoras da população, e o uso da neutralidade de gênero em documentos se tornou um deles, ou seja, um problema que não existe se tornou pauta.
Apesar disso, não é inoportuno explicitar que a linguagem neutra existe e é falada por determinados grupos de pessoas da sociedade. Se toda língua é inventada, se existem variações para um mesmo termo em diferentes regiões de um mesmo país, se um idioma é fruto de adaptações da língua de um colonizador e reverbera resquícios de uma língua que foi colonizada, é claro que pode-se adaptar e integrar novos usos em suas práticas e regras.
A cultura nada mais é do que um mecanismo de expressão de identidade, e se a nossa identidade pode ser múltipla e fluida, nossas formas de expressão tem a mesma liberdade e direito. No final do dia, pouco importa se o presidente decide apertar a mão de votantes que não compreendem a mutabilidade da expressão cultural e aprova um projeto de lei que não tem nem ação de fiscalização. A ação se torna um gesto simbólico vazio.
Pessoas não-binárias existem e continuarão se identificando em seus textos e falas de maneira neutra em gênero. A lei pode proibir o uso em documentos governamentais, mas o direito de falar sobre si, de escrever artigo científico, se comunicar para uma plateia ou falar em programas de TV e rádio continua sendo fundamental. O direito de livre expressão existe, apesar da constante invisibilização da população LGBTQIAPN+ em projetos de lei. A luta e a erguida continuam existindo.







