Kleber Mendonça Filho estreia O Agente Secreto em território nacional

Estrelado por Wagner Moura, o amplamente aclamado longa já é considerado forte concorrente à lista de indicados ao Oscar
Wagner Moura em O Agente Secreto (Divulgação/Cinemascópio)
  • Da Mega
  • Atualizado: 09/11/2025, 12:21h

Escrita por Lucas Eduardo

Kleber Mendonça Filho é um dos mais proeminentes cineastas do Brasil do século XXI, possuindo títulos em sua filmografia dos mais consagrados da década de 2010 em território nacional. Aquarius, que tensiona o caráter estético da cidade de Recife e aborda temas como envelhecimento, amadurecimento e solidão, e Bacurau, uma história política sobre uma comunidade que possui um ímpeto voraz de autoproteção contra figuras de autoridade que ameaçam a segurança de seus habitantes, são longas-metragem que impulsionaram a carreira do diretor e lhe garantiram um status de grande relevância na cena do cinema contemporâneo.

Particularmente, eu sou fascinado pelo curta-metragem de 2004, Vinil Verde. O formato de edição das cenas, o tom misterioso da narrativa e a premissa simples desencadeiam uma sequência de imagens desconcertantes. O desenrolar da trama explicita inquietações do diretor sobre desobediência e rebeldia, sobretudo sobre o sentimento de desvencilhar-se de algo que por vezes parece imutável. É uma das minhas produções nacionais favoritas.

O Agente Secreto é a mais recente narrativa de Mendonça Filho que aborda temáticas que parecem martelar a cabeça do diretor, título após título lançado. É um senso crítico notável e uma vontade insaciável de decupar os sentimentos, perceptível desde os seus primeiros trabalhos. Aqui, acredito que a grande exploração da vez seja a ideia de memória, recorrente também no documentário de 2023, Retratos Fantasmas.

Recomendo assistir ao novo longa sem saber muitos detalhes da sua trama, pois a narrativa é envolvente o suficiente para prender a atenção durante todos os seus 160 minutos . Sem entregar muito, a história se passa em 1977 e acompanha Marcelo, interpretado por Wagner Moura, recém-chegado em um condomínio, aparentemente um esconderijo,  que abriga as mais variadas famílias e é liderado pela dona Sebastiana, interpretado por Tânia Maria. Esta, aliás, rouba a cena sempre que está em tela. Enfim, Marcelo deseja mudar-se de cidade com o filho Haroldo, interpretado por João Vitor Silva, que viveu até então na casa dos avós maternos, pais da ex-mulher da personagem de Moura. Existe, porém, um motivo para a pressa de Marcelo de ir embora de Recife. A partir daí, eu insisto na ida ao cinema.

Kleber Mendonça Filho é um dos melhores contadores de história do cinema atual. Esse status ganhou força com a chegada de Bacurau em 2019 e a cada novo lançamento, o cineasta solidifica esse status. Em O Agente Secreto, o trabalho do artista é realmente um deleite. Por parte das críticas e comentários nas redes sociais, houve uma boa leva de telespectadores que não gostaram do final ou o acharam anticlimático. Existe uma quebra de expectativa, uma construção de tensão que vai se formando que, de fato, não desencadeia em um desfecho de maneira explícita, mas que entrega de maneira eficiente e deixa espaço para as cenas finais, que podemos chamar de epílogo, que precisam de um tempo a mais de tela para serem impactantes.

 

Elementos da narrativa e detalhes

 

            Logo na primeira cena, Marcelo para em um posto de gasolina e se depara com um cadáver a alguns metros das bombas de gasolina, questiona o frentista, que responde se tratar de uma ocorrência de carnaval, período do ano em que o filme se passa. Ele ainda menciona que chamou a polícia, mas que com a alta de casos por conta das festividades, as autoridades ainda não haviam chegado no local. Logo após essa cena, que possui mais detalhes e desenvolvimento do que o aqui escrito, é introduzido um trio de personagens, que trabalham na delegacia de Recife, averiguando uma ocorrência na universidade: uma pesquisadora encontrou, enquanto analisava o corpo de um tubarão, uma perna humana nas entranhas do animal.

            Nessa última situação, o filme emaranha em sua narrativa o conto popular da perna cabeluda, intrinsecamente pernambucano. Em dado momento da história real de Recife, havia relatos de uma perna grande e forte rondando as ruas da cidade, chutando a tudo e a todos que estivessem em seu caminho. É o uso da cultura local que o cineasta utiliza como núcleo narrativo para potencializar a mensagem do filme.

            Faço questão de destacar ambas as cenas porque elas exemplificam o que Mendonça Filho faz de especial em seus filmes, a justaposição de histórias. A cena no posto de gasolina não possui diálogos que explicitam muito bem os pensamentos das personagens, mas existe uma ambiguidade que paira no ar, não dita por Marcelo, que o faz sentir algo sobre aquele cadáver, jogado ali no meio do nada. Essa situação, basicamente, é um paralelo com a história do próprio Marcelo, desenrolada ao longo da narrativa.

            Anteriormente, eu disse que o filme aborda sobre memória e é aqui que o sentimento se encaixa no filme. Acredito que seja um dos grandes tensionamentos do diretor questionar a audiência “onde foi colocado o nosso direito à memória?”, “será se temos acesso à memória de quem nos compõe?”, ou ainda, “será se existe relevância no que já morreu?”. Aliás, o diálogo final explicita isso de maneira devastadora, importante destacar o local onde a cena se passa, ponto-chave para a compreensão do tensionamento.

            Em ambos os casos, a memória, seja individual ou coletiva, é ponto de reivindicação da narrativa do filme. Kleber Mendonça Filho não consegue desvencilhar-se do pensamento intrusivo de que memórias são efêmeras, por mais que sejamos indivíduos particulares parte de um coletivo, que por sua vez possui particularidades, e que essas particularidades também constituem a nós, que integramos o coletivo. A passagem do tempo leva consigo todos os resquícios de algo, por mais que esse algo seja de conhecimento geral, a mutabilidade dos costumes e de como o mundo pode ser enxergado e acessado torna as possibilidades cada vez mais amplas, deixando o conhecimento sobre o que já foi cada vez mais distante.

            O que não quer dizer que a memória seja frágil, por mais que precisamos ter cuidado para não banalizá-la ou descaracterizá-la. Eu também não consigo deixar de pensar que, em um futuro não tão distante, o que é importante para mim e para os meus, hoje, pode não ser tão digno de importância assim. E me parte o coração.

            Enfim, acredito que o trabalho de Mendonça Filho merece ser celebrado no cinema, pela qualidade da produção, pela narrativa envolvente, mas acima de tudo, acho que o diretor e roteirista vêm encabeçado, dentre outros fatores, um grande interesse coletivo pelo cinema brasileiro. E não que a cena nacional não tenha produzido excelentes filmes ao longo desses últimos anos, mas é em consideração de um mundo completamente novo, ao mesmo tempo tão globalizado e tão dividido, que a força da cultura nacional nos relembra que o Brasil é um grande criador de cultura. Essa memória jamais poderemos deixar que seja esquecida.

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