“O grito sem voz”: o silêncio cúmplice diante da violência sexual contra meninas e mulheres no Brasil

No Brasil, a violência sexual contra meninas e mulheres não é um problema distante — ela faz parte da vida cotidiana de milhões. Um levantamento recente do Instituto Patrícia Galvão, em parceria com o Instituto Locomotiva, revela estatísticas perturbadoras: 59% da população conhece alguma mulher que foi vítima de estupro ainda criança (até 13 anos) e 56% conhece alguém que sofreu violência sexual a partir dos 14 anos; 15% das mulheres entrevistadas disseram ter sido vítimas de estupro, sendo que 12% sofreu na infância. Seis em cada dez vítimas que sofreram violência na infância não contaram a ninguém. Além disso, apenas uma parcela muito pequena recebeu algum tipo de atendimento ou assistência — seja policial, seja médica.
Esses números, por si só, já sinalizam uma triste realidade. Mas ao cruzá-los com outros dados recentes, o quadro se torna ainda mais grave:
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No Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, foram registrados 83.988 casos de estupro e estupro de vulnerável, um recorde. Isso equivale a um crime desse tipo a cada 6 minutos.
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Dessas vítimas, 61,4% têm 13 anos ou menos, ou seja, crianças.
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A maioria dos agressores é conhecida das vítimas: moradores da mesma casa, parentes ou pessoas próximas.
O peso do silêncio
Os dados não apontam apenas para a escala do problema, mas para sua ocultação. Vários fatores ajudam a explicar por que tantas vítimas permanecem silenciosas:
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Medo, vergonha, culpa: muitas vítimas, especialmente crianças, sentem que não serão acreditadas, serão julgadas, ou que sua denúncia não mudará nada.
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Desconfiança nas instituições: procedimentos judiciais ou policiais frequentemente revitimam, fazem perguntas que culpabilizam a vítima (vestimenta, comportamento, localização etc.), ou simplesmente não oferecem apoio emocional ou jurídico adequado. O sentimento (bem fundado) de que denunciar exige mais sofrimento do que ficar calada.
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Padrões culturais de silêncio: tabus, normas de gênero, o machismo estrutural, a cultura de “não se meter”, o peso do que se chama “privado” — tudo isso contribui para que a violência sexual seja tratada como algo que se resolve privadamente, se é que se resolve.
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Falta de visibilidade e educação: muitos desconhecem seus direitos ou não têm acesso a informação segura de que existe proteção, acolhimento e atendimento. O medo de consequências econômicas, sociais ou familiares também pesa, especialmente para meninas e mulheres em situação de vulnerabilidade.
Por que o silêncio da sociedade é tão grave
O silêncio coletivo — de vizinhos, amigos, instituições, mídia, governos — produz consequências devastadoras:
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impede que a vítima receba cuidado médico ou psicológico, o que agrava traumas;
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permite que o agressor continue impune, possivelmente repetindo ou escalando a violência;
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mantém um ciclo de desinformação, normalização e indiferença, alimentando a ideia de que “não deve ser tão sério”, “é culpa da vítima”, etc.;
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enfraquece políticas públicas, porque invisibiliza a demanda real, reduz os índices oficiais, e permite que se subdimensione recursos para apoio, prevenção e reparação;
Panorama institucional: avanços e lacunas
Há iniciativas, leis e políticas que buscam proteger vítimas, punir agressores e dar visibilidade ao problema:
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O Disque 180 é uma ferramenta de denúncia que tem recebido cada vez mais chamadas; por exemplo, em São Paulo houve aumento de cerca de 43,7% nas denúncias via 180 em certo período.
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Relatórios do governo e do Ministério das Mulheres têm documentado desigualdades raciais e regionais na violência, mostrando que mulheres negras e de periferias são desproporcionalmente afetadas.
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A maior divulgação de dados públicos, estudos acadêmicos e ONGs também ajudam a colocar o tema em foco, educar a população e pressionar por mudanças.
Mas, apesar disso:
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A subnotificação continua massiva. Muitos estupros não são registrados formalmente. Dados indicam que apenas uma pequena fração das vítimas tem contato com polícia ou serviço de saúde. (Nos dados recentes, por exemplo, dos casos de estupro infantil ou de jovens, poucas vítimas procuraram atendimento ou denunciaram.)
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O sistema de saúde ainda falha muito em acolher e atender: há lacunas de formação de profissionais, de garantia de acesso rápido, de suporte psicológico e de proteção integral.
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Na justiça, processos são lentos, revitimização ocorre, e muitos agressores não são responsabilizados.
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Políticas de prevenção ainda são insuficientes — desde educação sexual nas escolas até campanhas amplas que promovam cultura de consentimento, igualdade de gênero e responsabilização dos agressores.
O papel (e a responsabilidade) de todos nós
Romper o silêncio da sociedade brasileira exige ação em várias frentes:
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Educação: investir em educação sexual, saúde, direitos humanos em escolas; ensinar sobre consentimento, respeito ao outro, igualdade de gênero desde cedo.
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Mídia e cultura: como se retrata a mulher, a vítima, o agressor; evitar culpabilização; denunciar o silenciamento; mostrar casos de superação; fomentar conversas abertas.
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Apoio institucional: aperfeiçoar os serviços públicos de atendimento — saúde, polícia, justiça — para que sejam céleres, acolhedores, sensíveis ao trauma; garantir que vítimas sejam ouvidas, acreditadas, protegidas.
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Legislação eficaz: leis bem desenhadas, aplicação rigorosa, medidas de proteção preventiva, acesso à justiça sem barreiras (econômicas, geográficas, culturais).
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Mobilização social: vizinhos, parentes, comunidades precisam romper a omissão — não silenciar diante de indícios de abuso, apoiar vítimas, denunciar; organizações da sociedade civil, lideranças, movimentos de mulheres têm papel fundamental.
Os dados recentes deixam claro: não estamos “fazendo suficientemente”. A violência sexual contra meninas e mulheres no Brasil atravessa gerações, classes, raças — e é mantida viva não apenas pelos agressores, mas pelo silêncio de tantos. Cada episódio não divulgado, cada vítima que sofre sozinha, cada denúncia que não se concretiza contribuem para normalizar o absurdo. Se queremos mudar, é urgente que o silêncio seja rompido — por nós, por elas. Nenhuma menina, nenhuma mulher pode seguir sem amparo, sem justiça, sem voz.