Algumas das histórias de Gita, o disco mais vendido da carreira de Raul Seixas
Maior sucesso comercial de Raul Seixas, o disco “Gita”, segundo da sua carreira e da parceria com Paulo Coelho, é um clássico da música brasileira. Lançado em 1974, um ano após “Krig-ha, Bandolo”, o álbum consolidou o artista baiano como um cantor de sucesso. “Na gravação de Gita, Raul passava a desfrutar de todos os privilégios de um astro, assim como dos investimentos mais dispendiosos que uma companhia de discos podia oferecer a um artista nacional naquela época”, conta Jotabê Medeiros, que escreveu a biografia “Não diga que a canção está perdida”, uma obra que narra as histórias do Maluco Beleza.
A faixa-título do disco, inspirada no livro Bhagavad Gita, aborda a busca pela divindade interior e foi composta em um episódio em que “a força divina estava presente”, como narra Paulo Coelho. Mais de 600 mil cópias foram vendidas na sua versão em compacto, que também contava com “Não Pare na Pista”, e impulsionou as vendas do LP.
“Gita se desenhava como marcado para o êxito antes mesmo de ser concluído. A canção-tema fora composta por Raul e Paulo Coelho em um mergulho na bucólica Dias d’Ávila, na Bahia, em apenas dez ou quinze minutos, segundo contou Paulo. ‘Uma coisa quase religiosa… um momento em que a força divina estava presente.’”
Apesar de episódio que Paulo Coelho protagonizou ao ser torturado por militares por conta das letras presentes no disco de estreia de Raul, a dupla continuou a sua parceria até 1976. Mas um outro destaque que chamou atenção em Gita foi o guitarrista Rick Ferreira, que, a partir desse disco, esteve presente em todos os outros trabalhos de Raul Seixas.
“Um dia, enquanto caminhava pelos corredores da Phonogram quando um dos seus produtores, seu grande amigo Sérgio Carvalho, o chamou com a porta entreaberta. ‘Raul, entra aqui, quero te mostrar um negócio!’ Raul entrou e Sérgio colocou uma fita cassete num grande gravador que tinha na mesa. Começou a sair um som de uma guitarra com toque country, um solo de raro refinamento. Raul estancou: ‘Caramba, Sérgio, quem é esse cara? Tem pegada de americano!’. O cara era o carioca Rick Ferreira.”
O guitarrista Rick Ferreira participou de todos os discos de Raul Seixas a partir do Gita, em 1974. Foto: Reprodução
Rick e Raul se conheceram quando o processo de produção do Gita já estava bem adiantado. Mas, depois do encontro entre os dois, o artista ficou convencido que queria que o guitarrista gravasse suas linhas de guitarra em algumas canções do disco. A mais memorável delas, “S.O.S”, conta com o recurso de um pedal steel, que molda aquele som característico da introdução da faixa e que foi um detalhe sugerido pelo Rick.
“Rick e Raul viraram inseparáveis (o guitarrista participaria de todos os seus discos a partir dali). Rick colocou sua guitarra em cima das canções ‘O Trem das 7’, ‘Água Viva’ e ‘S.O.S’. Nesta última, utilizou pela primeira vez em uma gravação brasileira um pedal steel que tinha comprado de um amigo para criar o som country adequado.”
Também foi durante a fase Gita que Raul conheceu a sua segunda esposa, Gloria Vaquer, irmã do seu parceiro de estúdio, Gay Vaquer – que gravou guitarras no Krig-ha, bandolo e teclados no segundo disco do baiano. Gay, que estava voltando pro seu país natal, os Estados Unidos, indicou que Gloria, que estava vindo para o Brasil, se encontrasse com Raul.
“Assim que voltou da sua primeira e inocente viagem aos Estados Unidos, Raul recebeu a visita do guitarrista e velho parceiro, o norte-americano Gay Vaquer, que estava de viagem de retorno à terra natal. Passado um tempinho da partida do guitarrista, Raul um dia recebeu o telefonema de uma moça que falava em inglês. Era Gloria, irmã do guitarrista, que tinha vindo conhecer o Brasil. [Gay Vaquer] indicara Raul como um porto seguro para a garota, para que ela transitasse com mais desenvoltura pelo país tropical. Gloria chegou ao apartamento de surpresa, mas Raul a recebeu com carinho e fez mais do que ajudar em sua incursão pelo país tropical: apaixonou-se pela garota.”
A chegada de Gloria na vida de Raul Seixas coincide com um momento em que o artista estava mais corajoso em tentar novas drogas. Raul, que em 1973 só tomava cerveja, passou a beber uísque e cheirar cocaína em 1974. Às vezes, ele até combinava as duas substâncias em uma só. “Gloria e Raul se casaram nos Estados Unidos. Ela o acompanhava na velocidade da nova vida loka que empreendia, aceitava as carreiras que ele lhe oferecia e nutria paixão comum pela vida artística. O súbito êxito tinha alterado de forma profunda o comportamento de Raul. Até meados de 1973, [ele] bebia moderadamente, e apenas e chope. Dispensava cachaça e destilados. Em um ano, passou a combinar dois aditivos poderosos: cocaína e uísque.”
Gloria Vaquer, Raul Seixas e Scarlet, a filha do casal, que nasceu em 1976. Foto: Reprodução
Seu consumo de cocaína se tornou tão grande que assustou o próprio parceiro de composição, Paulo Coelho. Um dia, num quarto de hotel, o escritor encontrou o cantor num estado tão deplorável que até decidiu que deveria parar de cheirar. “O parceiro, Paulo Coelho, contou que parou de cheirar cocaína no dia em que entrou no quarto de hotel em que Raul estava e o viu desmaiado no sofá, de boca aberta, com meia garrafa de uísque na mão, e, na mesinha do abajur, além de uma carreira de cocaína pronta para ser aspirada, um punhado de dólares em notas de cem. Raul era desmesurado e entrava com os dois pés no novo mundo de prazeres e excessos da roda da fama.”
Com o disco já gravado, tanto Raul quanto Paulo, além da esposa de cada um, foram para os Estados Unidos, mas para regiões diferentes do país. Raul e Gloria estavam em Nova York. E foi enquanto estavam por lá que o álbum começou a estourar por aqui no Brasil. O artista tinha que voltar para aproveitar o bom momento e aparecer nos programas de TV, rádio, fazer shows…
“Um dia, quando chegava ao apartamento que tinha alugado em Nova York, Raul foi surpreendido pela presença de um funcionário do consulado brasileiro. Eles procuraram o cantor em casa para ‘dizer descaradamente que Gita estava fazendo o maior sucesso, que era para eu voltar, que eu era patrimônio nacional’, contou o baiano, sarcasticamente. O disco, de fato, virou um sucesso absoluto (estima-se que aquele álbum possa ter vendido cerca de 600 mil cópias).”
Nas palavras do pesquisador conquistense Plácido Oliveira, Gita é “o auge da parceria entre o ícone maior do rock brasileiro e seu principal parceiro, Paulo Coelho, responsável por tornar o ‘raulseixismo’ uma espécie de religião não-oficial, viva até hoje. Raul conseguiu, ao mesmo tempo, se tornar Bob Dylan, Elvis Presley e John Lennon, suas grandes referências, em um lugar e momento histórico particularmente perigosos para pessoas tão abertamente transgressoras, revelando também o alto nível de coragem que carregava em nome do que acreditava. Raul não apenas fazia rock n’ roll: ele É o próprio rock n’ roll.”
Raul fazia muito sucesso, mas ficava longe do movimento da Música Popular Brasileira (MPB), ou, pelo menos, da sua “corte” formada por intelectuais. Um exemplo disso está na faixa “As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor". “Acredite que eu não tenho nada a ver com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira, a única linha que eu conheço é a linha de empinar uma bandeira”, canta ele em tom debochado.
Dois discos depois, no “Há Dez Mil Anos Atrás”, de 1976, o artista voltou a mandar críticas para a “chatice” do cenário da MPB. Em “Eu Também Vou Reclamar”, Raul solta umas indiretas, por exemplo, para Belchior – “Mas agora eu também resolvi dar uma queixadinha porque eu sou um rapaz latino-americano que também sabe se lamentar”.