“O sonho começou a acabar quando entrou dinheiro”, relata Ney Matogrosso sobre o fim do Secos & Molhados

  • Danilo Souza
  • Atualizado: 09/07/2025, 09:46h

Dois anos. Esse foi o intervalo de tempo entre a chegada ao auge e o fim da formação clássica do Secos & Molhados, que contava com Ney MatogrossoJoão Ricardo e Gerson Conrad. Para Matogrosso, a voz, a cara e o corpo do trio, “o sonho começou a acabar quando entrou dinheiro”.

Este texto é baseado no livro “Ney Matogrosso: Vira-lata de raça”, onde o cantor conta sobre as suas histórias ao longo da vida. Leia sobre os outros dois capítulos clicando aqui e aqui.

Danilo Souza e o livro “Ney Matogrosso: Vira-lata de raça”. Foto: Danilo Souza

O primeiro disco de estúdio do Secos & Molhados saiu só em 1973, mas, apesar disso, eles já se apresentavam ao vivo desde dezembro de 1972O primeiro show, que aconteceu na Casa de Badalação e Tédio, em São Paulo, já contava com a marca registrada de Ney Matogrosso, que também foi adotada por João e Gerson: corpos e rostos pintados.

“Em dezembro de 1972, fizemos a primeira apresentação do Secos & Molhados na Casa de Badalação e Tédio, do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, com os rostos e corpos pintados.”

Seja pela música ou pelo espanto que foi causado através de sua performance, já no terceiro dia de show o teatro tinha que ficar com as portas abertas devido à quantidade de pessoas curiosas para ver o trio.

“[…] no terceiro dia, o Secos & Molhados já era um sucesso estrondoso. Saíram muitas matérias de jornais, o teatro tinha de ficar com as portas abertas, pois uma multidão permanecia do lado de fora querendo assistir. Era muito impressionante, pois vivíamos o governo de Costa e Silva, um dos períodos mais sombrios da história do Brasil, época do AI 5, com aquela ditadura horrorosa, preconceituosa, censurando a todos.”

Gerson, Ney e João. Foto: Foto: Divulgação/ editora Tordesilhas / Ary Brandi

Falando de AI-5, é claro que os músicos chamaram atenção dos militares a partir daquele momento. A dança, o jeito de se vestir e a forma como se apresentavam eram vistos como uma ameaça no contexto da ditadura.

“A censura também ficou de olho em nós, os integrantes do Secos & Molhados – éramos considerados um problema para a moral e os bons costumes da época […] a força do Secos & Molhados estava justamente em não assumir uma postura de enfrentamento com a ditadura, mas em se constituir como um desafio comportamental através da dança, das roupas, da subjetividade.”

A partir disso, ciente de que havia se tornado um alvo dos militares, Ney Matogrosso decidiu fazer uma nova maquiagem. Inspirado no kabuki, popular na cultura do Japão, o cantor criou a sua própria versão da pintura, em preto e branco, que ficou muito conhecida por conta das apresentações na TV e nos shows.

“Por uma questão de privacidade, para me permitir agir e criar em cena com a liberdade que eu desejava, resolvi criar uma maquiagem inspirada no kabuki, o teatro tradicional japonês, com a diferença que era preto e branco. A personagem que criei me permitia liberdade para contestar aquela realidade opressora que vivenciávamos na ditadura, sem perder a privacidade.”

Um exemplo do Kabuki, usado como referência para a maquiagem de Ney Matogrosso. Foto: Reprodução

Ney Matogrosso com a maquiagem que o imortalizou no Secos & Molhados. Foto: Reprodução

Já conhecidos por suas apresentações ao vivo, em agosto de 1973, o trabalho de estreia do Secos & Molhados finalmente chegou ao público. No álbum, estavam canções que se tornariam clássicos da música brasileira, como Sangue LatinoO Vira e Rosa de HiroshimaO disco vendeu um milhão de cópias só naquele ano, segundo Ney.

“A gravadora esperava vender os discos em um ano, acabou vendendo tudo em uma semana. Em 1973 vendemos mais de 1 milhão de discos. O Secos & Molhados tornou-se um fenômeno da música popular brasileira […] vendemos mais que o Roberto Carlos.”

O sucesso repentino escancarou problemas já existentes no cerne do Secos & Molhados. O primeiro deles era o controle que Gerson e João tentavam ter sob a imagem do grupo, temendo ser vistos como uma “banda de homossexuais” por conta das performances, das pinturas e das roupas.

“Diziam que eu não podia me comportar requebrando no palco porque todos estavam nos rotulando como ‘um grupo de homossexuais’. Pelos militares éramos chamados de ‘viados comunistas’, era tão ridículo […] não esqueço do João e do Gerson, preocupadíssimos com esses comentários sobre o ‘grupo de bichas’, pedindo para eu me ‘controlar’. Eu disse simplesmente que eles dissessem que não eram – eu iria continuar me comportando do mesmo jeito, pois o acordo era o meu direito de me expressar livremente.”

Gerson, Ney e João, caracterizados, durante apresentação do Secos & Molhados. Foto: Divulgação/TV Globo

O atrito ainda não havia desgastado totalmente o trio, que seguiu em atividade. No ano seguinte, 1974, uma outra polêmica passa a cercar os três músicos: os americanos do Kiss e as suas maquiagens parecidas com as de Matogrosso, João e Gerson. Ney Matogrosso já falou sobre esse assunto diversas vezes em sua vida, e, no livro, afirma que foi o Kiss quem imitou o Secos & Molhados, e não o contrário.

“Não por acaso, após o surgimento do Secos & Molhados, surgiu o Kiss, um grupo de heavy metal em que os integrantes pintavam o rosto em estilo semelhante ao nosso. Nós nos lançamos em 1973 e eles foram lançados em 1974 – disseram que nós imitávamos o Kiss, mas era ao contrário.”

Acima, o Secos & Molhados; Abaixo, o Kiss. Os grupos surgiram em um intervalo de tempo bem próximo. Fotos: Reprodução

O principal motivo para o fim do grupo foi, no fim das contas, o aspecto financeiro. Em poucos meses, eles haviam chegado ao seleto grupo de grandes artistas da música brasileira, tocavam em todos os lugares e ganhavam muito dinheiro, mas não sabiam como lidar com isso.

“A dissolução do grupo ocorreu com a saída de Moracy do Val [primeiro empresário da banda] e a pressão de João Ricardo para que aceitássemos o pai dele como empresário. Quando isso aconteceu, nos colocaram apenas como empregados, e o grupo acabou.”

A carreira solo de Ney Matogrosso começou no mesmo ano do fim do Secos & Molhados, 1975, com o lançamento do disco Água do Céu – Pássaro, pela gravadora Continental. Ele considera que apesar da separação conturbada, não possui nenhum sentimento negativo sobre João Ricardo e resume a história com o grupo em uma palavra: gratidão.

“É bom que eu repita o que venho dizendo há décadas: não tenho nenhum sentimento negativo, ou ressentimento, em relação ao João Ricardo. Pelo contrário, sou muito grato ao Secos & Molhados e a ele. A palavra que resume minha história com o grupo é gratidão. Foi uma experiência que me trouxe muitos ensinamentos, o maior foi a compreensão de que era um artista de verdade, um cantor.”

Para Ney, o período do Secos & Molhados ficou para trás. Ele afirma ter recebido propostas para voltar ao grupo mais de uma vez, mas recusou todasEm 2025, o cantor completa cinquenta anos em carreira solo, enquanto o Secos & Molhados passou por várias formações e lançou outros sete discos de estúdio desde a saída de Matogrosso.

“Foi um privilégio surgir na música brasileira através do Secos & Molhados, mas não quero voltar ao passado. Já recebi propostas para voltar com o grupo e disse não, mais de uma vez. O que desejo fazer? Seguir minha vida, fazer meus shows e viver a minha história.”

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