Em entrevista no Mega Conversa, especialistas discutem desafios do uso medicinal da cannabis no Brasil

Da esq. para dir.: Franklin Cardoso, Nice Soares, Lucas, Gustavo Marra e Aline Peixoto. Foto: Ane Xavier
O uso medicinal da cannabis e os entraves para sua regulamentação e acesso foram debatidos na última edição do programa Mega Conversa, realizada na quarta-feira (30). Participaram da discussão Gustavo Marra, CEO do Grupo Medicana; Nice Soares, presidente da Associação Uai Hemp; e a enfermeira Aline Peixoto.
Durante o programa, os convidados abordaram os principais obstáculos que ainda limitam o uso da cannabis medicinal no Brasil. Segundo Gustavo, o país conta atualmente com cerca de 800 mil pacientes registrados em importação direta, mas o número ainda é pequeno frente à população brasileira. Para ele, o principal desafio é o preconceito social e político. "Apesar da RDC 327/335 da Anvisa, em vigor desde 2019, o assunto ainda enfrenta grande resistência. Não se trata mais de um tema novo, mas de um tema estigmatizado", afirmou.
Informação como ferramenta contra o preconceito e a resistência social
Gustavo Marra também defendeu a realização de eventos informativos como forma de disseminar conhecimento e reduzir o estigma. “Se cada parte envolvida — empresas, associações, médicos, clínicas e o poder público — atuasse para disseminar informações, o tratamento já estaria mais acessível em várias regiões do país”, concluiu.
Outro ponto debatido foi a importância da formação médica especializada ao se tratar de pacientes que precisem utilizar o canabidiol no tratamento. Segundo Nice Soares, o Grupo Medicana oferece cursos gratuitos e à distância para profissionais da saúde que desejam aprender a prescrever a cannabis de forma responsável. "O segredo do tratamento está no acompanhamento. O médico precisa estar presente para ajustar as doses conforme a resposta do paciente."
A plataforma educacional da Medicana, lançada em agosto de 2024, já conta com mais de 100 médicos cadastrados. O grupo também anunciou parcerias com universidades, como a UFLA (Unidade Federal de Lavras), para fomentar pesquisas acadêmicas sobre o tema.
Atenção individualizada e os efeitos do canabidiol no espectro autista
Nice Soares explicou que as associações de pacientes também auxiliam nas questões burocráticas, como a solicitação de autorização junto à Anvisa, além de oferecerem apoio jurídico em casos de judicialização. “Muitos dos nossos atendimentos são voltados para crianças com autismo, que têm sido o principal grupo beneficiado”. Ela também destacou os benefícios do canabidiol para pacientes neurodivergentes, ressaltando que o tratamento precisa considerar as particularidades de cada indivíduo, como hiperfoco e seletividade alimentar, por exemplo.
Ainda se tratando do tratamento com canabidiol para pacientes neurodivergentes, a discussão também abordou os efeitos adversos de medicamentos alopáticos, ou seja, aqueles produzidos pela medicina tradicional ocidental, como a risperidona, amplamente utilizada em crianças do espectro autista. Segundo Nice, há casos de efeitos hormonais severos, como o crescimento de mamas em meninos. De fato, estudos indicam que o uso dessa medicação pode estar associado a efeitos colaterais significativos, incluindo ganho de peso, sedação e aumento dos níveis de prolactina — hormônio que, além de causar o aumento das mamas, pode induzir a produção de leite (galactorreia), mesmo em pessoas que não estão grávidas ou amamentando.
Projetos de lei, judicialização e o papel do Estado no acesso ao tratamento
A enfermeira Aline Peixoto ressaltou a importância de compreender o histórico de criminalização da planta. “A origem do tabu está ligada a questões raciais e sociais. Ao longo da história, o álcool também já foi proibido. Hoje, estamos em processo semelhante de normalização com a cannabis”.
Aline destacou que, apesar da resistência, há avanços no campo científico e legislativo. "Projetos de lei já permitem que prefeituras e estados forneçam medicamentos, embora a maioria dos pacientes ainda precise recorrer à Justiça".
Gustavo Marra apontou que a substituição de medicamentos convencionais por cannabis pode gerar economia para o Estado. “Um paciente com autismo pode custar até R$300 mil por ano em terapias. O uso da cannabis reduz a dependência dessas intervenções”.
Apesar dos entraves burocráticos, os convidados concordaram que o Brasil tem avançado com responsabilidade. "A Anvisa criou um marco regulatório que separa o uso medicinal do recreativo. Isso permitiu que médicos e instituições desenvolvessem conhecimento com base científica e exportassem esse conteúdo para outros países", afirmou Marra.
Ao final do programa, os participantes destacaram a importância das associações na conquista de direitos e na popularização do tema. “O maior erro é ignorar que o canabidiol é uma terapia séria, que precisa de acompanhamento médico, dosagem correta e responsabilidade no uso”, concluiu Nice Soares.
Ouça o episódio completo, produzido e apresentado por Ane Xavier e Danilo Souza, abaixo. Disponível também no Spotify.