Indígenas venezuelanos buscam refúgio e encontram vulnerabilidade e desafios em Vitória da Conquista

  • Caique Santos e Fábio Agra
  • Atualizado: 06/08/2024, 05:05h

As marcas de expressão nos rostos de pais e mães de famílias que tiveram que fugir da sua terra natal em busca de sobrevivência não só desenham a luta pela vida, como trazem histórias de dor, superação e esperança. Vítimas de preconceitos e de desencontros dos poderes públicos, responsáveis por garantir direitos, famílias de indígenas venezuelanos têm vivido em situação de precariedade econômica e social, principalmente crianças e idosos.

Em um período de 15 dias, a reportagem da Mega fez uma imersão na grave situação social de indígenas venezuelanos que deixaram suas comunidades e atravessaram fronteiras até se estabelecerem em Vitória da Conquista.

No município, a situação humanitária dos refugiados e migrantes indígenas da Venezuela tem despertado a atenção da comunidade e de diversos atores dos poderes públicos, que afirmam estarem cumprindo a lei, mas o que se tem de relato dos próprios venezuelanos é que na prática os recursos não têm chegado a quem precisa.

A presença de cerca de 70 indígenas Warao da Venezuela em situação de vulnerabilidade social e econômica em Vitória da Conquista tem sido motivo de debates que envolvem acusações por responsabilidade entre poderes públicos e sociedade civil. Entre os pontos de discussão está a falta de celeridade para resolver problemas de acesso a direitos básicos, como moradia e escola, além da demora da Prefeitura para solicitação de recursos disponíveis pelo Governo Federal que poderiam ser utilizados com migrantes e refugiados ao longo dos últimos anos.

Nossa reportagem ouviu diversas instâncias que têm tido responsabilidade solidária e as que deveriam ter em relação às políticas públicas voltadas para a crise humanitária vivida pelos refugiados e migrantes indígenas venezuelanos em Vitória da Conquista.


Quintal de uma das casas dos indígenas venezuelanos em Vitória da Conquista. Foto: Fábio Agra

Por uma fresta, os olhares das crianças viram que algumas pessoas se aproximavam do seu portão. Nossa equipe de reportagem também estava em meio a mais três pessoas que faziam uma visita aos indígenas venezuelanos da etnia Warao que estão em Vitória da Conquista para doar-lhes roupas. Ao abrir o portão, cerca de seis crianças, sorrindo, correram para abraçar cada um de nós.

Era a primeira casa de duas que estávamos visitando para entender a situação de vulnerabilidade social e econômica que cerca de 20 famílias estão passando em Vitória da Conquista. No quintal da casa, onde havia colchões e roupas no varal, fomos recebidos por José Luís Baes, que foi professor por 11 anos de escola infantil na Venezuela, e também por outros homens e mulheres, que trabalhavam na agricultura antes de deixarem aquele país. Havia cerca de 30 pessoas na casa, entre adultos e crianças. Em meio às roupas, redes e objetos, uma pequena fogueira encostada no muro e que servia de fogão começa a se tornar apenas brasa em um fim de tarde da última sexta-feira.

Os indígenas venezuelanos da etnia Warao começaram a chegar a Vitória da Conquista há mais ou menos quatro anos. A crise política, mas especialmente econômica e social, na Venezuela, fizeram com que mais de 6 milhões de pessoas deixassem o país. Quase 3 milhões deles estão na Colômbia, 1 milhão no Peru, segundo o último relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) publicado em junho de 2024. No Brasil há por volta de 400 mil venezuelanos, Informações do ACNUR repassadas à equipe da Mega dizem que há mais de 11 mil indígenas venezuelanos das etnias Warao, Pemon, E’ñepa, Kariña e Wayúu registrados no Brasil.

Aflição por moradia e trabalho

José Luís Baes chegou ao país por Pacaraima, cidade de Roraima que faz fronteira com a Venezuela. Com ajuda de um cacique Warao, conseguiu se manter em seus primeiros dias no Brasil. Depois viajou também para Recife, antes de chegar a Vitória da Conquista.

Faz mais ou menos três anos que está no município e aqui se fixou. Mas embora se sinta acolhido e diz estar vivendo melhor no Brasil que na Venezuela, José tem lamentado a situação de vulnerabilidade. Sem trabalho e preocupado com seus familiares, especialmente com as crianças, sua rotina tem sido ir às ruas para pedir ajuda, já que não consegue ser professor, como na Venezuela, embora fale três idiomas, português, espanhol e warao, o que o levou a ser um tradutor dos outros indígenas.

 

“Então aqui não tenho trabalho. Não tenho como trabalhar e ensinar crianças.
Meu trabalho é sair na rua para fazer algo para defender a família e pagar o aluguel, pagar a água”
.

 

O aluguel custa R$ 500,00. Mês passado eles conseguiram pagá-lo, mas não sabem se terão dinheiro para este mês. A insegurança de não saber se terão um lar no próximo mês é uma das tantas preocupações e situações de vulnerabilidade pelas quais estão passando.


José Luís Baes, indígena e professor venezuelano. Foto: Fábio Agra

Numa noite de 9 de julho, um vídeo em que mostrava famílias venezuelanas dormindo em uma praça após precisarem deixar a casa em que moravam circulou pelas redes sociais. Na ocasião, crianças, mulheres e idosos estavam sem lar em uma noite fria do município. O coordenador da Cáritas de Vitória da Conquista, o diácono Luciano, tomou conhecimento e foi às ruas denunciar a falta de moradia e vulnerabilidade que os indígenas estavam passando. Ainda naquela noite, após toda a repercussão e pela intervenção da Prefeitura, voltaram para casa. Mas esse episódio explicitou ainda mais a aflição pela não garantia de um direito básico aos refugiados, que é a moradia.

Na ocasião a Prefeitura de Vitória da Conquista se manifestou através de nota em que dizia que assim que receberam a informação foram averiguar a situação. “A informação obtida é de que uma das casas em que eles residiam foi vendida e o proprietário estabeleceu o prazo de 30 dias para a desocupação do imóvel, a contar do dia 8 de julho. Dessa forma, não havia necessidade de as famílias estarem na rua, já que o prazo começou a contar agora. Assim, a equipe da Semdes (Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social) orientou as famílias a retornarem à residência, disponibilizando alimentação e transporte”, dizia a nota à época.

Há duas semanas, nossa equipe entrevistou o secretário municipal de Desenvolvimento Social, Michael Farias, e a gerente do Creas (Centro de Referência Especializada da Assistência Social), Tainá Alves, para entender como estavam sendo desenvolvidas as políticas públicas aos indígenas venezuelanos. Sobre o episódio da perda temporária de moradia especificamente, o secretário disse que foi criado um fato político.

“Foi uma coisa orquestrada, para gerar um fato político, que é extremamente danoso, negativo, isso demonstra uma ausência de conduta ética”, diz Michael. “A decisão de ir para a praça foi por outros motivos”, diz quando perguntado sobre o vídeo em que o diácono Luciano gravou para denunciar a situação em que se encontravam os venezuelanos.

Procurado, o Diácono Luciano rebate as acusações e afirma que só soube que as famílias estavam dormindo na praça quando os próprios venezuelanos relataram a ele a situação. Diz ainda que a Prefeitura quer que os próprios refugiados procurem as casas para alugar, o que dificulta, tendo em vista que eles não falam e nem entendem bem a língua portuguesa e devido às exigências burocráticas que as imobiliárias impõem para fechar um contrato. 

A barreira linguística e situação de vulnerabilidade são alguns dos empecilhos nessa jornada em que o poder público está delegando a eles.

Assim como José Luís Baes, Fermín-Rattia, agricultor Warao de 44 anos, também está apreensivo não só por moradia, mas por trabalho. Chegou semana passada de Belo Horizonte para Vitória da Conquista. Durante os últimos quatro anos havia passado por outros estados. Aqui se reuniu com seus familiares e espera conseguir emprego. Vivendo na mesma casa de José Baes, ele mostra o documento de residente válido até 2032.
 

“Com 44 anos eu estou jovem para trabalhar.
Eu preciso trabalhar aqui. Eu preciso de emprego”.

 

Na Venezuela, ele plantava mandioca e vendia também bananas, além de ser pescador. Com um olhar distante e angustiado ele só reafirma que tudo o que quer é trabalhar e cuidar do filho.

Crianças fora da escola

Deixamos a primeira casa já com o anoitecer e chegamos à segunda, que está a poucos metros dali. A situação é a mesma, muitas crianças, mulheres e homens querendo apenas viver dignamente, embora estejam em vulnerabilidade. Entre a alegria e sorriso das crianças, deitado em um colchão embaixo da cobertura do quintal da casa, um bebê de apenas cinco meses segura com esforço uma mamadeira cheia de leite. Uma mulher Warao o contempla.

Enquanto o bebê se alimenta, nossa reportagem conversa com Jhonni José Mata, 26 anos e agricultor. Jhonni relata o estado apreensivo em que estão constantemente. Assim como relatado por José, esse mês eles têm dinheiro para o aluguel, mas mês que vem já não sabem, além de que vão precisar deixar a atual casa para procurar outra. Jhonni também relata que as crianças da sua casa não estão matriculadas nas escolas.

A falta de escolas é um dos grandes problemas para os indígenas Waraos. Sem perspectivas para os adultos em termos de trabalho até o momento, as crianças também estão colocadas em situação de vulnerabilidade, pois não podem vislumbrar um futuro estando fora da escola.

“Queremos que meus filhos estudem, que vão para a escola. Que seja para o futuro, pois, porque na Venezuela, a coisa está ficando muito pior. Cada dia, cada mês”, teme Jhonni.

Perguntamos ao secretário de Desenvolvimento Social sobre o acesso à escola das crianças Warao uma semana antes de a visita acontecer aos indígenas. Na ocasião, Michael Farias afirmou que se articulou com a secretaria de Educação para matricular 12 crianças e adolescentes venezuelanos e as demais estão em processo de matrícula, por conta de documentação e busca de escolas mais próximas do domicílio. No entanto, o que se sabe é que algumas crianças não estão matriculadas, como atestam os indígenas Warao.

Enquanto algumas crianças nem sequer estão matriculadas, as que estão sentem dificuldades para se manter e se adaptar devido à falta de preparo do município para recebê-las. “Porque as crianças falam warao. Talvez a professora não fale warao. Só português”, queixa-se José Luis Baes ao relatar a língua como uma das barreiras.

A política pública que os indígenas Waraos têm recebido até o momento de forma completa é a vacinação e o acesso ao Programa Bolsa Família. Apenas um dos membros de uma das casas não está recebendo, pois teve problema com a documentação.

Aplicação de recursos aos indígenas venezuelanos

Além da insegurança por moradia e da falta de perspectiva de trabalho, tanto para homens quanto para as mulheres Warao, há também a insegurança alimentar e a própria necessidade de itens como roupas e colchões. Algumas instituições e a sociedade civil têm se mobilizado para mitigar as necessidades das famílias. No entanto, esse quadro demonstra que as políticas públicas não estão sendo bem aplicadas.

“Aqui que chega o alimento, chega a doação de colchões. Muitos amigos brasileiros que nos dão apoio com a comida, com o colchão”, diz José apontando para sua casa antes de reclamar da falta de apoio do Governo Municipal.

“Aqui, precisamos de mais apoio, mas eu vou falar algo para a Prefeitura. A Prefeitura não nos apoia. Não sei por que a Prefeitura não tem recurso”, queixa-se da Prefeitura de Vitória da Conquista, responsável por assegurar os direitos dos migrantes e refugiados, assim como o Governo Federal e Estadual.

Embora Vitória da Conquista não tenha aderido ao programa de Interiorização do Governo Federal, ou Programa Acolhida, como também é conhecido, para desafogar o fluxo migratório em Roraima, em 2021, o município solicitou recursos pertinentes à emergência migratória e recebeu R$ 120 mil do Governo Federal. Uma nova solicitação de recursos só voltou a acontecer em julho deste ano, quando foram destinados pelo Governo Federal ao município 158.400,00, que corresponde a um período de seis meses para atendimento emergencial de 66 imigrantes, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social. (MDS).

Estas foram as duas únicas solicitações da Prefeitura de Vitória da Conquista que constam no Ministério do Desenvolvimento Social. Foram três anos sem que novos recursos fossem solicitados pelo município, mesmo que nesse período famílias de indígenas venezuelanos necessitassem de políticas públicas.

A pedido da Mega, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), responsável por repassar os recursos aos municípios, se posicionou sobre as demandas de Vitória da Conquista para mitigar a crise dos refugiados venezuelanos. O Ministério informou que os repasses emergenciais pertinentes à questão migratória estão condicionados à solicitação dos estados e municípios por meio do envio de Ofício à Secretaria Nacional de Assistência Social. A nota do MDS esclarece “que na continuidade de oferta de serviços emergenciais para o acolhimento das famílias, para além do período mencionado, novos recursos podem ser solicitados pela municipalidade”.

Embora tenha havido um diálogo espaçado entre o Governo Municipal e Federal para a aquisição dos recursos, o secretário Michael Farias diz que falta uma estrutura organizacional de políticas públicas pelo Governo Federal e Estadual para lidar com a questão.

Michael Farias entende que a complexidade da questão dos indígenas venezuelanos em Vitória da Conquista requer, assim, iniciativa por parte também da Funai, e que a questão não deve ser remediada por doações apenas, mas sim através de políticas públicas claras e bem definidas sobre o total acolhimento das famílias venezuelanas, tendo em vista que eles precisam de muito mais do que alimento, precisam ter validados seu direito à dignidade e cidadania. Para ele, os recursos através de donativos que a sociedade recolhe não devem ser contados como política pública e diz que o Governo Federal deve assumir a responsabilidade na coordenação nacional dos trabalhos voltados para a construção de uma resposta humanitária, especialmente para indígenas venezuelanos de etnia Warao.

“Essa dificuldade da delimitação do fenômeno, na estruturação de uma resposta organizada entre as políticas setoriais, gera para o município uma fragilidade muito grande”, queixa-se o Secretário.


Michael Farias, secretário municipal de Desenvolvimento Social. Foto: Fábio Agra

Questionados sobre a falta de apoio aos municípios em face da crescente chegada de refugiados indígenas venezuelanos, o Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos (SJDH) e do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e ao Trabalho Escravo (NETP), enviou uma nota dizendo que “cabe ao município o acolhimento e as providências diretas de assistência aos imigrantes, com aporte financeiro do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS). Ao Governo do Estado cabe a disponibilização de serviços de órgãos e secretarias afeitas ao tema”. O NETP esteve em Vitória da Conquista no dia 20 de junho para visitar as duas casas onde vivem os 70 venezuelanos indígenas da etnia Warao e reconheceu “as péssimas condições que estão vivendo esses refugiados”, como disseram.

Sociedade civil

Com os poderes públicos empurrando as responsabilidades um para o outro, a sociedade civil tem agido para mitigar os problemas dos indígenas Warao. Em Vitória da Conquista, a Cáritas, instituição brasileira para o acolhimento a refugiados ligada à Igreja Católica, tem provocado os poderes públicos em várias esferas.

Diácono Luciano, representante da Cáritas no município, passou a ter contato com os venezuelanos após os indígenas irem até a Catedral Metropolitana pedir ajuda para alimentação. A partir daí, o Diácono Luciano, em nome da Cáritas, passou a fazer a intermediação entre as famílias, Ministério Público, Defensoria Pública, Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado, Prefeitura e a OAB de Vitória da Conquista.

“A gente percebe uma letargia, um desinteresse pela questão, o que nos dá a impressão é que a Prefeitura tenta fazer com que as coisas não se resolvam, na esperança de que eles saiam daqui. Há um desinteresse político na questão. Por exemplo, as mulheres são artesãs, elas produzem peças bonitas, cadê a intervenção das políticas públicas do município para inserir essas mulheres na economia popular e solidária, ao invés de deixá-las pedindo esmolas nas sinaleiras?”, questiona o Diácono.


Diácono Luciano, representante da Cáritas em Vitória da Conquista. Foto: Caique Santos

Conversamos também com o Acnur para entender melhor como a situação vivenciada pelos venezuelanos em Vitória da Conquista podem ter respostas mais efetivas a partir de uma articulação entre poderes públicos e a sociedade civil. Em nota, o Acnur diz que tem se colocado à disposição para contribuir com as políticas públicas voltadas para os refugiados.

“Cientes das responsabilidades e limitações de nosso mandato, temos nos colocado à disposição dos governos locais para pensar políticas públicas que garantam a essas populações o acesso a seus direitos – entre eles, o acesso à documentação, à saúde, à educação diferenciada, à terra e à moradia. Independentemente de sua etnia, nacionalidade ou qualquer outra característica, o processo de requerimento e concessão da condição de refugiado segue exatamente o mesmo rito processual das demais pessoas solicitantes, sem qualquer discriminação”, diz a nota do Acnur.

Em meio a tantas acusações, jogo de “empurra-empurra” e falta de experiência no trato com refugiados, a situação dessas famílias inspira ações urgentes, pontuais e planejadas, uma vez que o número de refugiados da Venezuela em Vitória da Conquista e outras cidades têm aumentado substancialmente, ainda mais em face da atual crise política após a conturbada eleição presidencial.

Nossa equipe perguntou a José Luís Baes e Jhonni José Matos o que eles esperam para as crianças indígenas que receberam nossa equipe com abraços e largos sorrisos. As respostas de ambos estão bem no presente, a necessidade de escola para que se tenha um futuro melhor.

Reportagem de Caíque Santos e Fábio Agra
E-mail: jornalismo@megaradiovca.com

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